Sunday, December 21, 2008

Os Sapatos do Major



Pôr um pé à frente do outro; o resto é milagre. Pouca gente está consciente disto: estar de pé e caminhar é uma coisa prodigiosa, aparentemente improvável; sobretudo se for observada de uma cadeira de rodas. É maravilhosa a estabilidade de uma pessoa a caminhar, sem precisar de efectuar cálculos constantemente; para fazer com que a projecção do seu centro de gravidade caia infalivelmente dentro do imaginário polígono de sustentação de geometria extremamente variável, à medida que caminha. Bastam algumas semanas sem podermos caminhar para recearmos que esse dom nos venha a ser retirado para sempre.
Há muito pouca diferença entre caminhar normalmente e voar, na perspectiva de um paraplégico. Só a consciência disso me permitia aceitar o sorriso condescendente das senhoras do Movimento Nacional Feminino que me tratavam como um privilegiado, por me saberem por pouco tempo confinado às limitações da cadeira de rodas.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino achavam que nenhuma desgraça era suficientemente grande para um homem, e que os males que nos corrompiam eram apenas dádivas que devíamos agradecer à Divina Providência. Devíamos agradecer por sermos amputados, pois bem poderíamos ser paraplégicos, e estes deveriam estar gratos por não serem tetraplégicos, porém estes últimos só por uma grande ingratidão não se sentiriam felizes por não terem morrido. Mas não se pense que os mortos estavam livres de demonstrar gratidão, pois que se tinham livrado de uma vida de limitações e sofrimento.
Não sejamos injustos com as senhoras do Movimento Nacional Feminino por elas não entenderem que basta uma erupção de acne na ponta do nariz, para um jovem se sentir um mutilado de guerra; é que elas afinal viviam no mesmo país do que nós, tinham o mesmo governo, liam os mesmos jornais, e não me custa admitir que fossem chamadas a frequentar algum curso de caridade cristã onde tudo se resumisse a convencê-las de que nos deveriam fazer sentir gratos por Deus não ter decidido tirar-nos mais alguma coisa, para além do que a guerra já nos tinha tirado.
Quando me pude pôr de pé, e voltei a ver o mundo olhando por cima da cabeça dos outros, como já me tinha habituado havia muitos anos, começava para mim um novo problema: substituir a perna, que a cobarde mina anti-pessoal me tinha tirado à má fila, por um par de canadianas que prolongavam os meus braços até ao chão e que me transformavam numa periclitante tripeça à beira do colapso.
Há um ditado italiano que diz que não há maior felicidade do que termos companhia no infortúnio; se isso é verdade, devo ter sido muito feliz no Hospital de Lourenço Marques, pois não conheço outro lugar no mundo com tanto perneta para me fazer companhia.
Aos domingos uma parte da população vinha visitar os militares feridos em combate, e procurava saber coisas do Norte; era a parte da população que tinha consciência de que algo estava prestes a mudar. Conheci uma outra parte da população: a que achava que a guerra era uma coisa que se passava no distante Cabo Delgado entre a malta de Lisboa e os pretos; nada que uma matança a sério, e depois um apartheid à portuguesa não resolvesse. E depois… E depois havia as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Havia qualquer coisa de patético nas senhoras do Movimento Nacional Feminino; qualquer coisa com sabor àquela doce degradação, só detectável no olhar de paciente mortificação das prostitutas dos bares de má fama da periferia das grandes cidades. Olhavam-nos com a distraída simpatia de quem tem por profissão distribuir calor humano em doses calculadas.
Sinto uma certa relutância em confessá-lo, mas era isso justamente que me fascinava nelas. Imaginava-as chegando a casa, cansadas de terem distribuído simulacros de simpatia, arremedos de afecto e até algum carinho bem imitado, e uma vez chegadas a casa, terem dificuldade em exercer as suas relações íntimas com autenticidade; pois que a alternância entre o afecto profissional e o afecto verdadeiro devia traí-las e fazer com que se confundissem, como acontece decerto com as prostitutas em relação aos utentes dos seus serviços e aos seus amantes verdadeiros. Em momentos de maior pendor para o drama, imaginava-as a entregarem-se à realidade das suas insípidas vidas afectivas em que também não recebiam mais do que esse embuste de sentimentos, das pessoas de quem verdadeiramente gostavam, e apetecia-me pegar-lhes fraternalmente nas mãos, o que imaginava ser o correspondente a beijar uma prostituta; algo que subvertesse a relação profissional e criasse um incontrolável contacto humano.
A esposa do Major era suficientemente feia para garantir que um contacto humano, por mais incontrolável que pudesse ser, não viesse jamais a incendiar tentações; mas era muito carente; tinha uma tal soma de carências por aquele corpo abaixo, que isso não a deixou entender aquele meu gesto romântico. E aqueles segundos em excesso durante os quais a minha mão pegou na dela, e que pretendiam passar por um acto paternalista, com uma dose certa de indulgência machista, tipo Hemingway num bar de prostitutas em Havana, foram tomados como um sinal inequívoco de um macho em ebulição hormonal, atormentado pelo primário instinto de acasalamento.
Por essa altura, eu já via o mundo de novo por cima das cabeças dos outros, embora a minha figura de canadianas se assemelhasse a um orangotango desengonçado que caminhava erecto, mas com a ajuda dos longos braços; e que um pijama curtíssimo, e o cônjuge sobrevivo do meu par de botas da tropa, faziam parecer um orangotango, mas com aptidão para a arte circense.
Enquanto tentava iludir a dança de acasalamento da esposa do Major, convenci o Herculano a levarmos a cabo um peditório para adquirir um par de sapatos; um único par, que nós éramos pernetas simétricos e calçávamos o mesmo número; esforço que ele não compreendia, dado que a esposa do Major repetia amiudadas vezes que me poderia ser mais útil do que eu imaginava.
Ao fim de uma semana já não parecia que houvesse uma alma naquele hospital a quem não tivéssemos pedido pelo menos duas vezes para o par de sapatos e a colecta não chegava nem a metade do necessário. Considerei seriamente a prostituição. Sem um sapato eu não poderia sair do hospital, e a utilidade da esposa do Major era seguramente menor que a minha imaginação.O dia seguinte amanheceu normal, nenhuma alteração climática veio alterar o curso dos acontecimentos, nenhuma notícia sobre a guerra veio interferir no meu estado de espírito, e eu preparei-me para a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino. As senhoras vieram, mas a esposa do Major não veio. Veio o cabo enfermeiro. – Ó Furriel Bastos, o Herculano saiu de fim-de-semana mas pediu-me para lhe dar isto. Uma caixa. Um envelope. Uma mensagem. "Espero que gostes. Felizmente o Major calça o mesmo número que nós. Um abraço. Herculano"

Tuesday, November 25, 2008

A Difícil Transferência do Ódio

Éramos umas crianças. – Disse José da Fonte.
Os soldados são sempre crianças, Bastos, ainda se ao menos os que nos comandavam fossem homens, mas eram crianças como nós. E os que eram homens não iam para o mato. Lá em Mueda conheceste alguém do quadro, que alinhasse nas operações de canhota nas mãos? Profissionais da guerra que nunca deram um tiro e os que foram para lá ao engano é que lhes guardavam o coiro! – Disse José da Fonte.
Está hoje um dia que me faz lembrar aquele céu de África. Trágico, não era? Um céu trágico aquele, em que de repente, do mais puro azul se desembrulhavam prá'li umas nuvens cor de sangue e rebentava uma tempestade dos diabos que nem dava tempo de tirarmos os ponchos, e ficávamos ensopados num instante. Aquilo era difícil, Bastos; também, se fosse fácil não estaríamos lá nós.
O povo e os filhos do povo é que pagam sempre a conta, não tenhas dúvidas, estejamos em guerra ou estejamos apenas a atravessar uma crise qualquer como agora. Quem paga somos sempre nós. E quando o problema acabar, mudam quem manda, criam uma nova ordem social, ou simplesmente mudam os nomes às coisas para darem a ideia que começou um novo jogo e que os que perderam, perderam e os que ganharam, ganharam: é o princípio do oportunismo. – Disse José da Fonte.
Era um tempo impreciso, esse em que vivíamos; o fim de uma época e o início de outra, não tivemos outro remédio senão ir aprendendo à medida que as coisas se revelavam para nós. Ninguém nos ensinou nada, a não ser odiar os que não nos queriam lá. E depois quando descobrimos que os nossos verdadeiros inimigos eram os que nos usavam como carne pra canhão, tivemos que transferir o nosso ódio. Mas o ódio vicia, Bastos, e não há nada mais difícil do que mudar o objecto do nosso ódio; e não há nada menos digno do que matar só pra não morrer. – Disse José da Fonte.
Bebe, pá, que lá não tinhas deste vinho. Um casqueiro com gorgulho e umas bazucas de Cuca e era um pau; e muita camaradagem, não era? Foi isso que fez de nós irmãos. O medo e a coragem; o tédio e a ansiedade; a solidão e a camaradagem – mas tudo intenso e real. Tão intenso e real como um espinho na carne. Olha: no dia em que foste ferido, chorei; escondi-me lá num canto qualquer, fumei um cigarro e dei por mim a chorar. Lembrei-me que tu costumavas dizer que nós nunca choramos os mortos, choramo-nos a nós mesmos, ou porque antecipamos a nossa própria morte, ou porque nos sentimos mais sós. Lembras-te de dizeres isto? Lembrei-me de ti a disparar para o capim, em cima da Berliet, no dia em que um soldado do teu pelotão rebentou uma mina. Lembras-te? Depois escondi-me na cagadeira a fumar um cigarro, para ninguém me ver chorar.
Tu vieste embora e muita coisa se passou depois, mas sempre nós a gramar a pastilha, ainda por cima tivemos um cabrão dum capitão armado em herói que nos punha no mato dia sim, dia sim e que depois se desenfiou para o Comando enquanto nós continuámos lá a garantir-lhe o subsídio de zona de cem-por-cento, que ele ganhava no ar condicionado enquanto nós foçávamos no mato, quando já devíamos ter ido para um lugar mais calmo. Sabes que pensei em dar-lhe uma carga de porrada quando o encontrasse aqui. Mas como dizia Tertuliano, a vingança dá apenas um prazer momentâneo enquanto o perdão dá um prazer duradouro. Perdoei-lhe a carga de porrada mas não esquecerei que alguns morreram para ele ficar bem-visto junto das chefias militares. Ó Bastos, se fosse fácil não era para nós. – Disse José da Fonte.
E agora, tantos anos depois? Até parece que falo com saudades daquilo, não é? Tenho saudades de mim, Bastos, tenho saudades de nós. Quando não acontecia uma desgraça éramos felizes. Tenho saudades de quando a vida era um milagre. Quando chegávamos todos; quando bebíamos um copo de cerveja morna e cantávamos todos desafinados, e então tu, pá, que cantavas mal como a porra; celebrávamos o dia por ele ter acabado com vinte e quatro horas. Para muitos, os dias acabaram a meio e nós ficávamos mais sós, como tu dizias.
Éramos umas crianças e o que fez a guerra de nós? Fez-nos homens? Acho que ficámos sem idade, Bastos. Na guerra os homens ficam sem idade. Crianças envelhecidas ou velhos prematuros. Por isso é que sentíamos a vida como um milagre, porque a vida é precária, Bastos, e nós aprendemos isso antes do tempo. Lá, ao menos, morríamos de coisas simples: um tiro, uma mina, um estilhaço de morteiro. Agora morremos de coisas com nomes complicados: nefropatia túbulo-intersticial, angiossarcoma hepático, ou então que tal uma neoplasia broncopulmonar malígna? Vamo-nos degradando até as pessoas que gostam de nós ansiarem por que os deixemos em paz. A vida não é precária, a vida é altamente improvável. – Disse José da Fonte.
Neoplasia broncopulmonar malígna. Eu acho que devia ter morrido jovem, Bastos, para ser recordado com o desconsolo de me saberem desaparecido com uma vida inacabada; para que sentissem a falta de todas as realizações que ainda esperavam de mim; para que se recusassem a aceitar a minha morte como uma coisa natural e odiassem alguém por eu ter morrido, fosse quem fosse – que arranjassem maneira de encontrar o verdadeiro culpado pela minha morte; ou ao menos, pá, para que uma mulher bela e jovem vivesse chorando com uma foto minha junto ao peito; ou se tudo isso fosse pedir demais, para que sobre a minha sepultura não exibissem para sempre o retrato de um velho decrépito.
Neoplasia broncopulmonar malígna. Um dia destes e muito em breve, Bastos, chegará um dia para mim que não terá vinte e quatro horas. Ninguém ouvirá o estampido de uma mina, ninguém se esquecerá de si mesmo, para gritar: o Zé da Fonte está ferido! Ninguém se atirará para o chão em meu redor para fazer uma barreira de fogo. Nenhum enfermeiro se arriscará corajosamente, vindo a correr desarmado para me tentar salvar a vida. Chegará apenas uma notícia pelo telemóvel a dizer que eu bati as botas e será um alívio para as pessoas que gostam de mim. Será que tu, Bastos, te vais esconder num sítio qualquer a fumar um cigarro, para que não te vejam chorar, porque a minha morte te aterroriza, porque fatalmente um dia será a tua vez? Não, Bastos, deixa-me acreditar que chorarás nesse dia como se eu tivesse tombado em combate, deixa-me acreditar que nesse dia beberás a tua cerveja morna sem cantares com a tua voz esganiçada, porque nesse dia não vieram todos, deixa-me acreditar que sentirás um ódio de morte mesmo que não saibas ao certo por quem, e que te apetecerá saltar para cima de uma Berliet a gritar: Venham cá filhos da puta, enquanto despejas o carregador da G3 no capim.
Bebe mais um copo, Bastos, que deste vinho não tínhamos lá, e deixa-me acreditar que nesse dia chorarás apenas por te sentires mais só.
– Disse José da Fonte, que, do que quer que morra e onde quer que morra, morrerá sempre em combate.

Wednesday, August 6, 2008

História de Amor com uma Guerra ao Fundo

Não, meu amor, não vou contar-te agora porque não posso ouvir essa música; agora acabaste de chegar da praia onde a tua silhueta vista daqui parecia uma criança sonhando com uma grande viagem. Põe uma canção que não faça sentido nenhum, uma canção que ganhe sentido apenas por ter sido ouvida quando eu ainda tinha na memória a tua imagem de criança sonhando.
Não, meu amor, não me obrigues a falar disso agora, não é nenhum segredo, é que ainda somos ambos jovens e se eu começar a falar disso vou envelhecer dezenas de anos e não vais querer um velho a teu lado enquanto os teus sonhos ainda são tão inocentes.
Vês esta luz amarela que vem do mar? Uma luz impossível mas que transforma esta hora do dia numa ampola de âmbar que segura o tempo para nos dar oportunidade de sermos felizes. É preciso alimentar a ilusão de que o tempo espera por nós ou nunca sentiremos prazer. Mais tarde, quando os nossos corpos estiverem cansados e os teus olhos ainda estiverem estremunhados de amor, já todas as músicas serão possíveis.
Há pouco a luz era ainda limpa e tu corrias sobre o areal, e depois paravas, e eu seguia-te por entre os desenhos da varanda, e o tempo parecia abrandar. É que eu meço o tempo com as batidas do coração, e ver-te daqui sobre a praia punha-me no coração uma paz assim tão grande, porque toda a praia era luz e tu eras apenas luz sobre a praia. Uma brincadeira do sol só para que tu parecesses uma criança sonhando com uma grande viagem.

Depois a tarde ficou azul – céu e mar. E tu, mais nada. Tirei uma foto, quase nada ficou na foto, só azul. A seda da luz poente e a longa toalha das águas. De vez em quando alguém de muito longe deveria puxar a toalha porque uma franja de espuma enrolava e desenrolava junto aos teus pés, e eu tinha um pensamento apenas: um dia vou lembrar-me que fui feliz aqui.
Ver-te daqui enquanto a luz da tarde amarelecia, era como pintar um quadro com o olhar. Não sei se era a praia que estava deserta se era eu que só te via a ti. Devia correr um ventinho do lado do promontório de onde D. Fuas ia caindo ao mar, porque o teu cabelo parecia desalinhado por uma carícia, depois viraste-te para aqui e vieste embora como se viesses atraída pelo meu olhar.
Saíste da praia como quem acorda devagar, e nasceu em mim uma urgência inexplicável de ficar a sós contigo, de ficar na intimidade absoluta dos nossos corpos, de comungar o síncrono prazer dos nossos gestos, de solver num só, as distintas essências dos nossos dois seres.
Agora que ainda sentes o mar arfando no teu peito, não ponhas essa música, que despertará ecos que ainda ressoam em mim, ao fundo, muito ao fundo, como uma nuvem negra que a aragem do mar vai afastando lentamente.
Talvez um dia eu me sente assim a teu lado e te conte a ti o que impus a mim mesmo esquecer. Quando eu era um outro e vivia uma outra vida num outro mundo. Então alguém inocentemente pôs uma música a tocar, uma música que nessa altura ainda nada significava para mim, mas que se impregnou dos silêncios e dos gritos, das longas solidões e das mitigadas alegrias. Uma música que se impregnou do sofrimento do próprio Tempo que penava dolorosamente e envelhecia sem avançar. Essa música devolve-me as vozes de amizades de sangue e de ódios viscerais. Essa música é o estertor do Tempo à beira do colapso. Agora deixa que isso permaneça esquecido como uma carta perdida no fundo de uma gaveta de um móvel antigo no sótão da casa de um avô há muito falecido.
Talvez um dia eu me sente assim a teu lado e te conte tudo, palavra por palavra, como se tivesse acontecido a outro, como se fosse um livro que li enquanto criança, um breve pesadelo que assombrou a minha infância. Mas tenho que estar preparado, porque pode acontecer-me que alguma antiga lágrima não chorada venha a intrometer-se na conversa. E então, poderás pôr essa música enquanto bebermos pelo mesmo copo e fumarmos o mesmo cigarro; mas nessa altura teremos uma longa história de amor e já nada nos poderá roubar todo o prazer que tivemos.
Mas neste momento, enquanto a nossa história de amor é ainda muito jovem, deixa-me olhar-te em silêncio ou então, ao som de uma música ainda sem significado nenhum, como a banda sonora de um filme que acompanha as imagens sem darmos por ela; de modo a que fique gravada apenas no nosso subconsciente para que um dia ao ouvi-la de novo nos sintamos repentina e incompreensivelmente felizes.
Agora, meu amor, que nada mais exista para além de ti; que eu só veja a luz do céu que dura nos teus olhos, que eu só ouça o arfar do mar que persiste no teu peito, e ao fundo, muito ao fundo, que eu ouça apenas o rumor das ondas sobre a praia, como o fragor de uma batalha distante, disputada entre povos desconhecidos; uma guerra fútil qualquer onde nunca combati, com mortos e feridos que nunca conheci, e cujo sofrimento não perturbe o meu egoísmo de querer ser feliz.
Agora deixa que tudo pareça uma intempérie distante, imaterial e inofensiva, enquanto saboreio o tangível e doce aconchego do teu corpo, enquanto partilhamos essa onírica vertigem que só as almas inocentes sentem antes das grandes viagens.

Monday, February 4, 2008

A Dor Fantasma

Ó Manuel (a minha mãe pronunciava sempre todas as sílabas do meu nome) está ali uma senhora que quer falar contigo.
Eu fui de canadianas até à sala e a senhora levantou-se e desatou a pedir desculpas numa torrente de palavras que não me dava hipótese de falar.
- E o meu home' chama-me tola, aquele bêbado diz qu' isto é maluqueira minha. E mostrou a mão a que faltava o polegar. – Qu' eu não devia vir incomodá-lo. Mas disseram-me q' o senhor tinha ficado sem uma perna em África e eu tinha que vir cá. Não estou nada maluca 'tão não?
Ainda o pó não tinha assentado bem na picada, e o Lemos para o enfermeiro Costa: – Eu sinto as minhas pernas… eu não fiquei sem as pernas, pois não, Costa? E nós a segurarmos o soluço na garganta.
Ainda nesse mesmo dia, no Hospital do mato em Mueda, o cirurgião, num exercício didáctico de psicoterapia, a explicar-me a mim que o que eu sentia era psicológico, que o fenómeno se devia ao facto de o amputado não aceitar a mutilação e isso gerar alucinações, induzindo na imaginação a presença do membro perdido. Que a dor que eu sentia era um sonho, era o desejo da preservação da integridade anatómica do corpo. E o cabo enfermeiro: - Ó furriel, isso são só as dores fantasmas, 'tá pe'ceber?
- É assim como se tirássemos daí essa cama, 'tá pe'ceber? Depois carregávamos na pêra e lá dentro tocava à mesma a campainha a dizer “cama 6”. 'Tá pe'ceber?
Ali, na sala, sentada à minha frente, a senhora de olhos muito abertos, brilhantes de alegria. Eu a comparar o polegar que lhe faltava com a cama do hospital do mato e ela sem perceber nada, só dizia: -Obrigado. Obrigado. Obrigado. E a minha mãe de olhos comovidos a segurar o soluço na garganta.

Todos os amputados sabem que não é um distúrbio psicológico. De facto o nosso cérebro é enganado pela alteração anatómica do corpo, dado que continua a receber, através do sistema nervoso residual aquilo que este está programado para lhe transmitir após um traumatismo brutal como aquele: dor. Tal e qual como a luz que se acendia no hospital de Mueda a dizer "cama 6. Tirassem ou não tirassem aquela cama, diria sempre "cama 6", e para nós o pé também continuava ali, invisível, a doer,
O Luciano, no Anexo do Hospital Militar em Lisboa, tinha uma explicação mais transcendente. Sentir a perna amputada era a prova evidente que tínhamos uma alma. Uma parte do corpo tinha desaparecido, mas nós sentíamos o pé na mesma porque, como não tínhamos morrido, a alma continuava íntegra, com pé e tudo.
Eu, no meu insensível sarcasmo de ateu, costumava adoptar esta explicação do Luciano, por me parecer a mais poética, e explicava às pessoas que me viam caminhar de uma forma quase escorreita, que tudo se devia ao facto de a parte da alma correspondente à perna se encontrar agora dentro da prótese, tornando-a aos olhos de deus, tão humana como qualquer criatura divina. E a minha mãe, mortificada de temor cristão segurava mais uma vez o soluço na garganta.
Muitos soluços teve a minha mãe que segurar na garganta desde aquela noite fria de inverno em que me viu partir de fardeta verde no corpo e boina basca de fitas a esvoaçar ao vento, como dois longos lenços, um verde, outro vermelho, a despedirem-se dela; até ao dia em que me viu chegar de canadianas e com a perneira das calças vazia. Segurava o soluço, abafava a dor, calava a desgraça, para que a minha avó, na sua cândida senilidade, não sofresse também, desnecessariamente.
Quando se fala da guerra colonial, poucas vezes se fala da outra guerra; a outra guerra travada sem tréguas, nas aldeias e nos campos, pelas mães portuguesas; impotentes, sem amparo nem consolo de uma pátria que pouco lhes dava e as deixava assim a sofrer, à distância de meio mundo dessa parte de si mesmas que lhes havia amputado; carne da sua carne, sangue do seu sangue, e já agora, alma da sua alma.
As mães portuguesas também sabem que é possível sentir a dor de algo que nos é arrancado e que persiste para além do corpo, para além da vista, para além do entendimento; não como um distúrbio psíquico, não como um truque de electricidade, não como uma metafórica extensão da alma; nem sequer essa dor que o nosso sistema nervoso persiste em manter real apesar de o órgão que dói já não existir; mas uma outra dor, que uma vida inteira não sei se terá dado para nos ajudar a perceber, e que agora felizmente, em tempo de paz, só com um exercício de imaginação conseguimos conceber. Essa dor que só uma mulher podia sentir, por saber que o ser que se gerou do seu ser, no único milagre possível, o improvável milagre da vida; disputava, em paragens cuja distância não entendia, o jogo mais radical e definitivo e se entregava ao ritual mais macabro e obsceno, de braço dado com a Morte. Essa dor de sentir a dor de quem se ama, não como alguém que nos pertence, mas como alguém que emana de nós, que só o mistério dos afectos maternos mais uterinamente íntimos mantém a latejar, apesar da distância, apesar do silêncio, apesar da ignorância. Essa fantasmática dor, como um flamejante e indestrutível cordão umbilical.

Tuesday, January 8, 2008

Saudade de Azul

O médico pra mim: Ó senhor Sousa, o meu amigo tem que ter coragem.
Que sabe aquele gajo de coragem? E a Etelvina: Ó Zé, no podes pensar assim, no podes pensar assim.
A minha vida parece um dia de chuva na praia e as pessoas só complicam. Eu só lá fui pra pedir uns remediozitos pra dormir e o raio do médico: O Amigo ouve vozes? E eu cá pra mim: Vai-te fornicar, eu ouço o raio que te parta.
Este gajo e a minha mulher fazem-me lembrar o furriel na picada do Chindorilho a agitar a G3 no ar, cheio de cisma, e a mandar a gente avançar debaixo de fogo. E eu cá pra mim: Vai-te fornicar, que eu sou pedreiro, vim prá'qui à força. A verdade é que ele lerpou com uma mina e eu estou inteiro. Durmo mal, mas estou inteiro.

A minha vida parece uma tarde de chuva na praia, a baba da chuva a escorrer na pala da barraca e as gaivotas murchas no areal deserto. E eu sentado a fumar um cigarro e a olhar pra ontem. Às vezes chovia assim em Moçambique, mas nós nunca parávamos por causa disso. Porque havia eu de ir embora daqui? – Ó Zé, anda embora que vai chover. E eu cá pra mim: Vai-te fornicar. Que vou eu fazer para casa? Um gajo casa com uma mulher jeitosa e a pouco e pouco ela fica seca como as palhas, e não tarda nada ficamos com a impressão que nos distraímos e casámos com a sogra.
Depois aquele gajo, armado em psiquiatra pergunta-me se ouço vozes. Claro que ouço vozes. Ainda ouço o furriel de G3 no ar: Tá andar! Tá andar! Vamos proteger o enfermeiro. E eu: Vai-te fornicar que eu sou pedreiro, vim prá'qui à força. Depois fiquei a vê-lo de pernas desfeitas no meio da picada e deu-me pena.
Volta e meia a mulher chateia-me, que eu não ando bem e que devia pedir ajuda. Ela quer dizer que eu preciso de ir ao psiquiatra, e eu pra ela: Eu sei bem o que tenho, ou melhor dizendo, o que não tenho, o que perdi. Ninguém me pode dar o que perdi, percebes. - Ó Zé, no podes pensar assim, no podes pensar assim.
Na verdade eu não sei dizer o que perdi. Sei que perdi muito, porque dantes a minha vida era como um dia de praia cheio de sol, com as gaivotas a voar no céu azul cheio de luz. Agora, não sei, talvez seja da idade. Dá-me a ideia que passei toda a minha juventude na guerra. Ao menos o furriel veio sem uma perna mas esteve lá apenas uns três meses, no máximo.
Depois cheguei aqui e o meu pai: Ó Zé, olha que dizem por aí que a Etelvina não te respeitou. Eu devia ter dado de frosques nessa altura mas não tive coragem. "Ó senhor Sousa, o meu amigo tem que ter coragem" como diz o outro. Mas eu fiquei a olhar para ontem e ela parecia-me… sei lá, parecia-me uma gaivota murcha e eu tive pena dela, tal como tive pena do furriel aos gritos no meio da picada do Chindorilho.
Eu sou pedreiro. É o que eu sou. Tal como o meu pai e o meu avô; não nasci pra ser soldado e andar aos tiros, e aquilo mexeu comigo. Mas esta gente não percebe.
Se quero ficar assim sozinho na barraca da praia num dia de chuva, a fumar um cigarrito, o que é que tem demais? As gaivotas murchas, a babugem da chuva na pala, os pingos a fazerem furinhos na areia e o mar bravo, o mar agitado como eu à noite. O mar também nunca dorme. Estou a ver o médico a perguntar-lhe se ouve vozes.
Claro que ouço vozes. Ouço o furriel a dizer: Ó Sousa, tá andar, estás borrado com medo pá. E eu cá pra mim: Vái-te fornicar que eu sou pedreiro como o meu pai e o meu avô, não nasci para andar aos tiros.
A Etelvina ainda voltou a faltar-me ao respeito mais umas quantas vezes; eu sei, porque ela saía de casa de manhã como uma gaivota murcha e chegava à tarde alvoroçada como uma garnisé acabada de galar. Mas isso foi antes de ficar parecida com a minha sogra. Agora já não há problema, agora já ninguém lhe pega. Mas eu deixei de conseguir dormir e só queria um remédio, mas o raio do médico começou a dizer que eu sofria de uma coisa com um nome complicado derivado a ter andado aos tiros em África. Eles acham todos que eu vim de lá cacimbado, traduzindo por miúdos, mas eu quero que eles se forniquem.
Às vezes dou pela Etelvina na cozinha a abanar a cabeça e a olhar para mim quando me sento à frente do microondas para ver o telejornal ou quando tento aquecer a sopa na televisão; mas que tem de mais? Ela tem os dois aparelhos na cozinha ao lado um do outro, e eu sou um bocado distraído, mais nada. Às vezes pego no telecomando para fazer um telefonema ou no telemóvel para mudar de canal mas isso é porque não me dou com estas tecnologias de agora, aquilo para mim é tudo igual, e ela a abanar a cabeça…
- Põe os olhos no nosso Mário, a combater em Timor e sempre tão cheio de coragem. E mostra-me a foto do catraio com aquele nariz curto, tão parecido com o patrão dela. Demasiado parecido com o patrão dela. Eu quero que eles se forniquem todos. A combater, a combater quem? Algum deles alguma vez ouviu uma Kalash, uma costureirinha, um morteiro 122? Eles sabem o que são minas e fornilhos? Está tudo muito certo, sim senhor, mas o catraio foi pra lá por causa do guito e agora esta gaja fala dele como um herói e mostra-me a foto com aquela tromba curta a lembrar-me o amante.
Eu sei poucas coisas é verdade, sou apenas um pedreiro, mal sei escrever e não percebo nada de políticas, mas sei que não é a missão que entregam a um homem que faz dele um herói mas sim a forma como ele se entrega à sua missão. É por isso que às vezes fico assim a olhar pra ontem. É por isso que ainda ouço a voz do furriel na picada a chamar. E o cabo enfermeiro com tanto medo como eu mas a tratar do ferido debaixo de fogo.
E o mar bravo. O mar tão bravo. Sempre inquieto dia e noite. Um mar que ouve vozes como eu. E as gaivotas pousadas, apeadas, no meio do areal ensopado e deserto. Não têm para onde ir como eu. Almas inquietas, corpos murchos. Um dia de chuva cinzento, com saudade de azul.
Como eu.