Pôr um pé à frente do outro; o resto é milagre. Pouca gente está consciente disto: estar de pé e caminhar é uma coisa prodigiosa, aparentemente improvável; sobretudo se for observada de uma cadeira de rodas. É maravilhosa a estabilidade de uma pessoa a caminhar, sem precisar de efectuar cálculos constantemente; para fazer com que a projecção do seu centro de gravidade caia infalivelmente dentro do imaginário polígono de sustentação de geometria extremamente variável, à medida que caminha. Bastam algumas semanas sem podermos caminhar para recearmos que esse dom nos venha a ser retirado para sempre.
Há muito pouca diferença entre caminhar normalmente e voar, na perspectiva de um paraplégico. Só a consciência disso me permitia aceitar o sorriso condescendente das senhoras do Movimento Nacional Feminino que me tratavam como um privilegiado, por me saberem por pouco tempo confinado às limitações da cadeira de rodas.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino achavam que nenhuma desgraça era suficientemente grande para um homem, e que os males que nos corrompiam eram apenas dádivas que devíamos agradecer à Divina Providência. Devíamos agradecer por sermos amputados, pois bem poderíamos ser paraplégicos, e estes deveriam estar gratos por não serem tetraplégicos, porém estes últimos só por uma grande ingratidão não se sentiriam felizes por não terem morrido. Mas não se pense que os mortos estavam livres de demonstrar gratidão, pois que se tinham livrado de uma vida de limitações e sofrimento.
Não sejamos injustos com as senhoras do Movimento Nacional Feminino por elas não entenderem que basta uma erupção de acne na ponta do nariz, para um jovem se sentir um mutilado de guerra; é que elas afinal viviam no mesmo país do que nós, tinham o mesmo governo, liam os mesmos jornais, e não me custa admitir que fossem chamadas a frequentar algum curso de caridade cristã onde tudo se resumisse a convencê-las de que nos deveriam fazer sentir gratos por Deus não ter decidido tirar-nos mais alguma coisa, para além do que a guerra já nos tinha tirado.
Quando me pude pôr de pé, e voltei a ver o mundo olhando por cima da cabeça dos outros, como já me tinha habituado havia muitos anos, começava para mim um novo problema: substituir a perna, que a cobarde mina anti-pessoal me tinha tirado à má fila, por um par de canadianas que prolongavam os meus braços até ao chão e que me transformavam numa periclitante tripeça à beira do colapso.
Há um ditado italiano que diz que não há maior felicidade do que termos companhia no infortúnio; se isso é verdade, devo ter sido muito feliz no Hospital de Lourenço Marques, pois não conheço outro lugar no mundo com tanto perneta para me fazer companhia.
Aos domingos uma parte da população vinha visitar os militares feridos em combate, e procurava saber coisas do Norte; era a parte da população que tinha consciência de que algo estava prestes a mudar. Conheci uma outra parte da população: a que achava que a guerra era uma coisa que se passava no distante Cabo Delgado entre a malta de Lisboa e os pretos; nada que uma matança a sério, e depois um apartheid à portuguesa não resolvesse. E depois… E depois havia as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Havia qualquer coisa de patético nas senhoras do Movimento Nacional Feminino; qualquer coisa com sabor àquela doce degradação, só detectável no olhar de paciente mortificação das prostitutas dos bares de má fama da periferia das grandes cidades. Olhavam-nos com a distraída simpatia de quem tem por profissão distribuir calor humano em doses calculadas.
Sinto uma certa relutância em confessá-lo, mas era isso justamente que me fascinava nelas. Imaginava-as chegando a casa, cansadas de terem distribuído simulacros de simpatia, arremedos de afecto e até algum carinho bem imitado, e uma vez chegadas a casa, terem dificuldade em exercer as suas relações íntimas com autenticidade; pois que a alternância entre o afecto profissional e o afecto verdadeiro devia traí-las e fazer com que se confundissem, como acontece decerto com as prostitutas em relação aos utentes dos seus serviços e aos seus amantes verdadeiros. Em momentos de maior pendor para o drama, imaginava-as a entregarem-se à realidade das suas insípidas vidas afectivas em que também não recebiam mais do que esse embuste de sentimentos, das pessoas de quem verdadeiramente gostavam, e apetecia-me pegar-lhes fraternalmente nas mãos, o que imaginava ser o correspondente a beijar uma prostituta; algo que subvertesse a relação profissional e criasse um incontrolável contacto humano.
A esposa do Major era suficientemente feia para garantir que um contacto humano, por mais incontrolável que pudesse ser, não viesse jamais a incendiar tentações; mas era muito carente; tinha uma tal soma de carências por aquele corpo abaixo, que isso não a deixou entender aquele meu gesto romântico. E aqueles segundos em excesso durante os quais a minha mão pegou na dela, e que pretendiam passar por um acto paternalista, com uma dose certa de indulgência machista, tipo Hemingway num bar de prostitutas em Havana, foram tomados como um sinal inequívoco de um macho em ebulição hormonal, atormentado pelo primário instinto de acasalamento.
Por essa altura, eu já via o mundo de novo por cima das cabeças dos outros, embora a minha figura de canadianas se assemelhasse a um orangotango desengonçado que caminhava erecto, mas com a ajuda dos longos braços; e que um pijama curtíssimo, e o cônjuge sobrevivo do meu par de botas da tropa, faziam parecer um orangotango, mas com aptidão para a arte circense.
Enquanto tentava iludir a dança de acasalamento da esposa do Major, convenci o Herculano a levarmos a cabo um peditório para adquirir um par de sapatos; um único par, que nós éramos pernetas simétricos e calçávamos o mesmo número; esforço que ele não compreendia, dado que a esposa do Major repetia amiudadas vezes que me poderia ser mais útil do que eu imaginava.
Ao fim de uma semana já não parecia que houvesse uma alma naquele hospital a quem não tivéssemos pedido pelo menos duas vezes para o par de sapatos e a colecta não chegava nem a metade do necessário. Considerei seriamente a prostituição. Sem um sapato eu não poderia sair do hospital, e a utilidade da esposa do Major era seguramente menor que a minha imaginação.O dia seguinte amanheceu normal, nenhuma alteração climática veio alterar o curso dos acontecimentos, nenhuma notícia sobre a guerra veio interferir no meu estado de espírito, e eu preparei-me para a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino. As senhoras vieram, mas a esposa do Major não veio. Veio o cabo enfermeiro. – Ó Furriel Bastos, o Herculano saiu de fim-de-semana mas pediu-me para lhe dar isto. Uma caixa. Um envelope. Uma mensagem. "Espero que gostes. Felizmente o Major calça o mesmo número que nós. Um abraço. Herculano"
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