Thursday, November 8, 2007

A Irreverência do Meu Pé Esquerdo

- Poque tens o pé no ar?
Acordo para aquela voz de criança e para aqueles olhos como dois lagos negros ávidos de luz e estou um momento para tentar entender a pergunta. E ela repete – Poque tens o pé no ar? Olho para um lado e para o outro como fazemos sempre que uma pergunta difícil nos confronta com a nossa ignorância, mas como também é costume nestas ocasiões, ninguém parece disponível para me ajudar. Olho estupidamente para o pé, de biqueira no ar, como se olhando para ele a inspiração viesse em meu auxílio e sorrio, o que sempre constituiu a melhor forma de demonstrar o próprio embaraço.
- Põe o pé pa baixo!
Há confrontos com a realidade que nos deixam nus em público, sobretudo quando somos apanhados de surpresa por estarmos com a cabeça noutro lado… Tão longe… Estava tão longe. O Sol tinha apenas começado a dissipar a neblina nos jardins do Bundeswehr Krankenhaus em Hamburgo (que nós aporteguesámos para Bom-de-Ver Cracanholos) e eu rastejava sobre a relva para tentar fotografar os coelhos que haveriam de sair das tocas para ver o Sol nascer.

- Não! Respondo eu, pondo uma cara de exagerada contrariedade, e a menina abriu ainda mais os olhos e virou-se meditativa para o meu pé esquerdo, que continuava teimosamente empinado.
Para poder rastejar à vontade sobre a relva eu deixara a prótese e a canadiana equilibradas uma na outra, talvez inspirado no método que usávamos na tropa para pôr as armas de cano para cima num feixe em pirâmide a que chamávamos pitorescamente "ensarilhar armas". Não sei qual das duas coisas mais interessava aos alemães que já constituíam um público considerável nas janelas do hospital, cracanholos para os portugueses; se o ensarilhar armas da minha prótese com a canadiana se a figura altamente suspeita, deitada sobre a relva, de pijama e de máquina fotográfica em punho, apontada para coisa nenhuma, à espera que os coelhos saíssem da toca.
Enquanto a minha teimosia em não pôr o pé para baixo aumentava a indignação da menina dos olhos negros ali à minha frente; a minha teimosia em fotografar os coelhos aumentava o assombro dos alemães, na minha memória.
-Poque é que no pões o outo pé assim?
-Porque não gosto tanto do outro pé. O rosto da criança abriu-se num sorriso de felicidade típico do género humano, quando finalmente alguém dá mostras de sensatez numa conversa a dois, o que no tolerante critério de uma criança sobre o que seja a sensatez, não tem um sabor especialmente gratificante.
-Deixa o senhor em paz! E lá vão aqueles olhos argutos sempre focados na biqueira irreverente do meu pé esquerdo.

Dando o assunto sobre o meu pé esquerdo por definitivamente sanado o Sol abriu finalmente, nos jardins algo sombrios do Hospital Militar de Hamburgo e um coelho aparece timidamente à entrada da toca.Dentro de minutos sou rodeado de coelhos que fotografo incessantemente, imaginando que por essa altura os alemães já tenham entendido o meu propósito e se tenham abstido de chamar alguém para me levar em segurança para o serviço de psiquiatria numa camisa-de-forças.

Agora sentada ao colo da mãe; ora inclinando a cabeça para um lado, ora para o outro, como se quisesse estudar o problema do meu pé esquerdo por todas as perspectivas possíveis; a criança ainda não me parece completamente satisfeita com a conclusão que o assunto teve.
Mas satisfeito estava eu, recordo-me bem, e com um sorriso de rara felicidade, com a tarefa de fotografar coelhos ao nascer da aurora e de surpreender os soturnos alemães com a minha dedicação às causas da arte; sorriso que se transformou numa exaltação triunfante, quando ao levantar-me e ao calçar a prótese; os alemães um a um, da imensa fachada do hospital, começaram a bater palmas até constituir uma ovação verdadeiramente entusiasta.
-O senhor que está só pra mostrar a prótese nova pode entrar que o senhor doutor atende-o já.
-Sabes? Diz a menina, que veio a correr no meu encalço, fugindo à mãe -Sabes poque é que pões o pé assim? Poque tu és mas é um gande vaidoso.