Monday, December 7, 2009

O Inconveniente da Inteligência

Sofia é uma mulher feliz. Olha-se ao espelho. O cabelo em desalinho. Deixa cair na cama de novo, o corpo ainda dormente de prazer. O chuveiro na casa de banho imita a chuva de verão na varanda, e Sofia deixa os pensamentos soltos fluírem à toa, como fotografias atiradas à sorte para cima de uma mesa.
O homem que toma banho em silêncio, só o fervilhar do chuveiro a competir com a chuva, penetra na sua vida quase só tangencialmente, como uma flecha de luz que a ilumina e aquece mas que continua o seu percurso deixando-a sempre como estava antes de chegar. As vidas de ambos têm muitos momentos de contacto como este, mas não se fundem uma na outra, são a água e o azeite, eternos símbolos das uniões imperfeitas, mas se isso às vezes lhe deixa um travo de incompletude, outras vezes como agora, dá-lhe um perverso prazer. Ele vai sair primeiro, ela depois, como se não tivessem nada em comum. É esse ludíbrio que faz desta sua relação um segredo delicioso. Apenas uma sombra cúmplice atrás da cortina de renda do segundo esquerdo. Depois a cortina ondula e a sombra desaparece.

Sofia é uma mulher feliz. Ouve o chuveiro ao despique com a chuva lá fora, como que a prolongar as ondas de choque do seu encontro secreto; pensa no movimento conivente da cortina da vizinha e sente-se a viver a trama de um romance.
Sofia gosta de verbalizar as coisas. – O cérebro é o nosso órgão erógeno por excelência.
Ele acha que não. – As emoções não são para racionalizar, ser-se demasiado assertivo com os sentimentos torna-os meros jogos de conveniência, e pode transformá-los em cinismo.
Sofia sabe tirar prazer desta relação clandestina, é como beber água com sede, água que caia da própria fonte na sua boca e que ao bebê-la passe a fazer parte de si. Mas mais ainda do que o sexo, que mistura apenas os seus dois corpos, ela sente que o diálogo, olhos nos olhos, é que os aproxima da solvência completa, pondo em palavras explícitas o que o nublado dos sentimentos deixa apenas sentir.
– É preciso falar o amor, dizê-lo, para que o amor deixe de ser um mero acto mecânico. E ao fazê-lo conseguimos que a nossa nudez deixe de ser apenas superficial e o prazer da nossa entrega englobará todo o nosso ser.
– A nudez completa mata o mistério, Sofia, e o conhecimento total do outro anula o prazer da descoberta, e é disso que se alimenta a paixão. E depois, tem que haver sempre uma reserva de intimidade para preservarmos a nossa individualidade.
Mas Sofia precisa dessa partilha íntima para tornar substantiva aquela relação tão efémera. Existe em especial uma área obscura em que jamais conseguiu insinuar-se para além da superfície. Como se despertasse uma dor incógnita. Uma dor clandestina.
– Como foi isso?
– Isso, o quê?
– Isso da tua perna. – E o olhar dele a responder com o silêncio. Levanta o olhar, desvia-o para qualquer coisa, ou na falta de um objecto, olha para o infinito, e com um sorriso nervoso faz-lhe entender que aquela é uma área de total insolvência, um assunto que cai na reserva da intimidade individual.
– Isto é uma medalha de guerra, mas se não te importas não falemos disso agora.
Hoje parece demorar mais no chuveiro do que habitualmente; é sinal que o encontro lhe deu mais prazer, que não tem pressa. Hoje vai parar um pouco junto dela antes de sair. E os pensamentos dela como fotos atiradas à sorte para cima de uma mesa.
Naquela tarde de um outro verão, ele a aproximar-se rua acima, com aquele andar de animal ferido, fazendo esforços para ter um porte digno, e Sofia a imaginá-lo tombado algures em África, de arma na mão, arrastando-se ferido sobre o pó de uma picada num acto de bravura, desesperado e dramático.
Algum tempo depois, a nudez do seu corpo exibindo as marcas desses tempos violentos. Como se fosse um atestado da sua condição de macho dominante. E ela a sua fêmea natural, acima de qualquer convenção social, conhecedora da cartografia íntima dessas marcas secretas.
– Como foi isso?
– Isso, o quê?
– Isso da tua perna. – E o olhar dele em busca de um objecto onde pudesse pendurar-se.
Ela deixa-o sempre tomar banho primeiro, gosta de ficar deitada sentindo o corpo abandonado à lassidão que se segue ao prazer que ele lhe dá, como um prado que conserva o calor de um dia de verão quando a tarde já arrefece.
Ele sai da casa-de-banho já vestido. Senta-se a seu lado.
– Gosto de te ver assim, ainda suada.
– Gostas? É porque a sensualidade é feita de desequilíbrios.
– Ai é?
Ela sente que pode conduzir o diálogo de modo a voltar ao assunto sem ele o perceber antecipadamente.
– Sim. É como na Dinâmica. Se algo se encontra demasiado estável não se moverá.
– Estou a ver. – Disse ele só por simpatia, meio distraído, sem perceber a relação.
– Com a Estética é a mesma coisa, tem que haver algo desequilibrado, assimétrico; uma linha a mais, ou a menos, uma cor que destoe, um som que arrisque a afinação, uma palavra que desafie a gramática; ou tudo não passará de um exercício sem emoção.
– Estou a ver. – Ele, agora surpreendido com tanta eloquência por um motivo tão banal.
– Por exemplo, um rosto muito simétrico pode ser agradável mas ganha logo em sensualidade se essa harmonia excessiva for desequilibrada por um simples sinal ou cicatriz.
Fez-se um pequeno silêncio, e a palavra cicatriz ficou no ar como uma badalada que continua a ouvir-se muito depois de ter soado. Depois ficou apenas o ruído monótono da chuva na varanda a realçar o silêncio.
O rosto dela ganhou luz preparado para falar e o dele perdeu toda a expressividade, a preparar-se para ouvir. A inteligência pode ser uma vantagem, quando se quer perceber alguma coisa, mas é sempre um grande obstáculo quando se quer esquecer.
E depois quando ela disse: "A primeira vez que vi essa tua perna nua, achei que eras alguém especial, que tinhas uma história, que tinhas densidade; que não te esgotarias na amizade, no sexo…", ele levantou-se enquanto o ruído da chuva enchia aquele quarto de silêncio.
Apalpou os bolsos à procura do maço de tabaco, num gesto que abandonara há anos, e sentiu-se desarmado. Não seria possível terminar aqui a conversa sem perder a serenidade.
Olhou-a de frente. – Acredita que há desequilíbrios que não têm dinâmica nem estética nenhuma. Há cores que destoam dentro de um homem e sons que desafinam a sua sanidade mental, a tal ponto, que parecer-se alguém especial porque se teve uma história que deixou uma marca no seu corpo é algo pouco mais do que fútil. Não fazes ideia de como se pode ansiar pela mediocridade, de como se pode desejar ser um entre uma multidão anónima; para quem, o mais longe que foi, foi em passeio; para quem, a maior emoção vivida, foi vivida como espectador; para quem nada em si o ligue irremediavelmente a um caminho que desejaria desesperadamente nunca ter percorrido. Tanto, que é possível matarmos esse que fomos, um suicídio de personalidade, e seguirmos pela vida fora tentando renascer como outra pessoa.
Dar-te prazer saber desse que fui, é como se me desse prazer a mim falar de uma violação de que tivesses sido vítima, só pela volúpia egoísta de te poder consolar.
Tu não podes entender o que foi ter nascido nos nossos olhos, a pouco e pouco, o brilho sinistro da morte. Como uma insanidade moral, porque o soldado faz a guerra e a guerra faz o soldado. Chegámos àquilo a que se pode reduzir um ser humano. Chegámos ao patamar da animalidade.
– Mas tu lutaste pela sobrevivência, mataste para não morrer.
– Não percebes nada do que estás a falar. Sabes… o melhor soldado não é aquele que luta por um ideal, nem o que luta para sobreviver, o melhor soldado é aquele que luta sabendo que vai morrer. Não é a esperança que faz um soldado matar, é o desespero.
As guerras não têm estética possível, porque só têm um lado: o lado abjecto da chacina.
A cor quente do sangue a destoar na frescura verde da paisagem. O terror a desequilibrar a excessiva harmonia do rosto dos inocentes que nos olham antes de morrer à procura de um resíduo de humanidade.
Tragicamente belo não é? No fim da ópera o público abandona a sala e regressa ao ócio dos salões; no fim do romance fecha-se o livro e regressa-se ao conforto do sofá; no fim do filme desliga-se a televisão e toda a tragédia vai para onde foram os nossos pesadelos de infância ao acordarmos em conforto e segurança na cama dos nossos pais; mas, e se não tivermos como desligar os nossos pesadelos? E se a nossa história for o monstro que temos fechado na cave da nossa própria casa, enquanto tentamos dormir em paz no quarto por cima dele? Pior: esse monstro é a parte de nós que já morreu, à espera que abram o alçapão, para vir tomar posse do que resta de nós.
Procurou de novo o tabaco nos bolsos, como se não tivessem passado dez anos desde que deixara de fumar, como se uma parte de si que tivesse morrido numa guerra antiga tivesse vindo tomar posse do seu corpo.
Sofia, ainda nua, ainda suada, ainda sentada na cama; levantou o braço para o prender quando recebeu o beijo de despedida, mas em vez disso, cobriu apenas o corpo como se tivesse acordado nua na presença de um estranho. E ficou assustada. E ficou a vê-lo sair como alguém que foge para procurar refúgio numa multidão anónima. Os seus passos a perderem-se pelas escadas abaixo e a confundirem-se com aquela chuva de verão que fervilhava na varanda.
O silêncio com a voz ciciante da chuva. O corpo subitamente subtraído a uma violação. Os pensamentos, agora, como fotos exibidas num diaporama, uma após outra, ordenadas, obsessivas, explícitas, a acusarem-na de um caminho que não deveria ter percorrido. A mostrarem como o racionalismo pode transformar os sentimentos em puro cinismo.
Sofia é uma mulher feliz, demasiadamente feliz para entender que a curiosidade pode ser tão cruel como a besta que descobre hibernando no fundo da alma humana.
Quando saiu para a rua sob a chuva tristíssima de verão viu a ondulação voyeurista da cortina do segundo esquerdo e uma sombra de censura ficou muito tempo a assombrar-lhe os passos pela escada abaixo, até se perder, ela também, por entre a multidão anónima.