Monday, March 15, 2010

O Contágio da Felicidade

Quando chegou ao Sobreirinho, em vez de endireitar para o arraial da Nossa Senhora do Ó, meteu-se como quem vai para o Peneireiro, e eu ainda disse desconfiada: “Para onde me levas Mário?” mas ele, nada; respirava muito depressa, a modos que com raiva, e metia as mudanças sempre a arranhar como se não soubesse conduzir; quase bateu no portão da Quinta do Tanque. Acho que bateu. Ao depois tirou-me do carro à força com cara de poucos amigos como quem me queria bater. Percebi logo o que ia acontecer e fiquei sem pinta de sangue. Ainda tentei fugir mas estava sem acção nenhuma, com as pernas bambas. Foi tão rápido. A minha cara na chapa do carro, a chapa a queimar-me, o cheiro a gasolina, e ele: “Quieta!”.
Ele a resfolegar como um cavalo na minha nuca, e o meu corpo a aceitá-lo dentro de mim. Era como se eu fosse duas. Uma em pânico a querer gritar de horror e a outra em delírio a querer gritar de gozo. Mas eu ferrava os dentes no braço para não fazer barulho porque do outro lado do muro passava gente.
O corpo não nos pertence, se pertencesse eu teria esperneado, gritado, mas não, só a minha cara a avançar e a recuar na chapa quente do carro e a dor e o gozo ao mesmo tempo, que Deus me perdoe se peco, mas era como se ele me estivesse a esventrar, salvo seja, e isso fosse bom. O meu corpo fugiu-me, deixou de ser meu. Porque é que Deus me fez assim? Porque não tive forças para resistir? Quando ele acabou de se servir de mim eu já não me tinha de pé, e escorreguei até cair de joelhos à frente do carro, toda esmolambada. Em pouco tempo fiquei um nojo. Num minuto deu cabo do que eu levei uma hora a arranjar para ir para o trabalho já preparada para a festa.
Ele com as calças arreadas, nos artelhos, como se tivesse ido à sanita e não encontrasse o papel higiénico. Ao depois a urinar num arbusto, a sacudir-se e a arrumar aquilo atirando o traseiro para traz. Que asco! Que ódio! Eu só disse: “Leva-me para casa.” Ele passou a mão na porta de trás do carro à procura da esmurradela e rosnou “Que chatice!” Acendeu um cigarro e tirou-me dali já a saber conduzir, já a respirar devagar, já sorridente; embora sebento de suor, com as mãos a deixarem marcas em tudo o que tocava. Ao passo que eu me sentia desfeiteada, porca, com um corpo que ainda não me parecia meu.
O pior era no dia seguinte no emprego, como é que eu ia encarar aquele varrasco?
Logo no primeiro dia de trabalho eu vi que ia ter problemas com ele. Um olhar doentio, sempre a pôr defeitos em tudo o que eu fazia, só para eu ter que lhe pedir ajuda. Mas eu não nasci ontem, sei muito bem como me defender, e não era um cavalo como ele que me ia levar à certa, desdemente que eu não lhe desse lugar a ousios. Além disso o Adelino era filho do patrão, e ele não se esticava muito. Mas na Segunda-feira da Senhor do Ó ele esperou por mim lá dentro, e apareceu à porta como quem não quer a coisa, a dizer que ia à festa em Aguim e tal. Eu achei normal e aceitei a boleia, mas ia desconfiada; mal ele começou a ficar nervoso, eu achei que estava em perigo e fiquei para morrer – meu dito meu feito.
Maldita a hora.
O Adelino, que ficou de me ir buscar, mas que para mal dos meus pecados nunca tem horas para nada – sempre foi assim – deixou-me ali especada; e eu, cansada de estar à espera, caí na esparrela.
Como é que eu ia encarar aquele animal na Terça-feira? Ele sabia que eu tive prazer. Se calhar não foi uma violação porque eu tive prazer. Mas só Deus e eu é que sabemos que eu não queria ser abusada por aquela besta, mas ele sabe que eu gozei como uma égua no cio, e isso é que me atormenta. Violou-me sim, foi como se me tivesse injectado à força uma droga no corpo que me fez perder a cabeça. Ele violou-me a dobrar: violou o meu corpo com a força bruta e a minha vontade com o prazer, e eu fiquei num farrapo, desonrada na carne e no orgulho.
Como eu nunca mais lhe olhei para as fuças, ele um dia destes no trabalho todo daimoso: "Em acabando isso vem falar comigo que te enganaste nesta venda-a-dinheiro." E eu: "Se tens alguma reclamação, fala com o patrão." E aquele javardo ao depois passou por mim e resmordeu: "Tu és boa é a encher pipas ao alto." Aquele untuoso, aquele filho duma cadela, que Deus me perdoe, que a Ti Adelaide que Deus tem era uma santa.
Acho que não devia estar a escrever estas coisas no meu diário, alguém pode um dia ler isto, e de mais a mais, agora o que eu faço de melhor é pôr tudo para trás das costas, que remédio.
Eu queria esquecer tudo o que se passou mas parece-me que toda a gente sabe. Em primeiro achei que ninguém sabia mas ao depois fiquei desconfiada que ele se gabou aos amigos do copo, que parece que têm visco no olhar e estão sempre na caçoada quando passam por mim e que até parece que me comem com os olhos. Aqueles moinantes hão-de futurar lindas coisas a meu respeito. Um botou-me uns olhos manhosos e disse para eu ouvir: “Será q’anda esponque?” Que ele é um bêbado sempiterno, um boca de favas que não dá uma para caixa; que o que ele queria dizer era "suponha que", que é como se diz pranha em Aguim. Aquele labrego. Para salvação da minha alma eu andava prevenida, senão tinha-me desgraçado.
Ainda se se dissesse: Ah, ela tinha falta de sexo e queria era deboche, mas não, eu namorava com o Adelino e tinha tudo o que queria dele; fui é apanhada de surpresa no meu ponto fraco. Mas não é o ponto fraco de todas as mulheres? Mas sabe Deus e eu em como eu antes preferia morrer do que ter prazer, só nojo e dor; que ainda sinto raiva por ter deixado perceber que gozei com as brutidades daquele porco roncolho, mas as forças foram-se-me não sei para onde, e eu fiquei de joelhos a ganir sem fôlego à frente do carro.
Na Terça e na Quarta fiquei em casa, mas na Quinta voltei à festa e foi nesse dia que reparei no Zé. Aqueles olhos ternurentos postos em mim, e eu deixei-me sorrir para ele – que ainda estou para saber porquê.
O Adelino a atazanar-me a paciência e eu a dizer-lhe: "Deslarga-me, vai fazer companhia àquela delambida com quem estiveste na Segunda-feira, e eu à tua espera." Ele a desfazer-se em desculpas e eu cá para mim: "Está bem deixa, daqui não levas mais nada." Que eu até andei embeiçada com ele, e ó mais, nunca me faltou com nada, e até é filho do patrão e tudo, mas não é homem de uma mulher só.
E fui-me achegando para o Zé, um passinho de cada vez. E ele a ficar corado, sem saber onde por as mãos, mas a dar passinhos no meu endireito também. Quando estávamos ao lado um do outro, ele para mim: "Está uma noite primorosa." Ó meu Deus, onde vai ele buscar aquelas palavras?
Mas eu senti uma alegria dentro de mim como se me tivessem dado uma prenda, um ramo de flores; nem sei explicar bem. O tratos que ele não deve ter dado à cabeça para se sair com aquela palavra ali do pé para a mão, só para me impressionar, e eu disse-lhe: "Está uma noite linda para começar um romance."
E assim Deus me dê saúde em como aquela noite foi a primeira noite do nosso romance.
Olhei para ele e perguntei-lhe se queria dançar comigo. Ele ficou tão atarantado que me apeteceu rir. Pegava na minha mão com as pontas dos dedos como se tivesse medo de me magoar, então eu agarrei a mão dele com a minha mão toda, e ele todo envergonhado. Envergonhado só por pegar na minha mão.
Fui-me encostando a ele devagarinho para não o assustar, e ele tão feliz, tão feliz, que até parece que me pegou a felicidade.
Aquela foi mesmo a primeira noite do nosso romance. Que o que eu senti, tive logo a certeza que era amor.
Amor é quando a felicidade se pega.

Monday, December 7, 2009

O Inconveniente da Inteligência

Sofia é uma mulher feliz. Olha-se ao espelho. O cabelo em desalinho. Deixa cair na cama de novo, o corpo ainda dormente de prazer. O chuveiro na casa de banho imita a chuva de verão na varanda, e Sofia deixa os pensamentos soltos fluírem à toa, como fotografias atiradas à sorte para cima de uma mesa.
O homem que toma banho em silêncio, só o fervilhar do chuveiro a competir com a chuva, penetra na sua vida quase só tangencialmente, como uma flecha de luz que a ilumina e aquece mas que continua o seu percurso deixando-a sempre como estava antes de chegar. As vidas de ambos têm muitos momentos de contacto como este, mas não se fundem uma na outra, são a água e o azeite, eternos símbolos das uniões imperfeitas, mas se isso às vezes lhe deixa um travo de incompletude, outras vezes como agora, dá-lhe um perverso prazer. Ele vai sair primeiro, ela depois, como se não tivessem nada em comum. É esse ludíbrio que faz desta sua relação um segredo delicioso. Apenas uma sombra cúmplice atrás da cortina de renda do segundo esquerdo. Depois a cortina ondula e a sombra desaparece.

Sofia é uma mulher feliz. Ouve o chuveiro ao despique com a chuva lá fora, como que a prolongar as ondas de choque do seu encontro secreto; pensa no movimento conivente da cortina da vizinha e sente-se a viver a trama de um romance.
Sofia gosta de verbalizar as coisas. – O cérebro é o nosso órgão erógeno por excelência.
Ele acha que não. – As emoções não são para racionalizar, ser-se demasiado assertivo com os sentimentos torna-os meros jogos de conveniência, e pode transformá-los em cinismo.
Sofia sabe tirar prazer desta relação clandestina, é como beber água com sede, água que caia da própria fonte na sua boca e que ao bebê-la passe a fazer parte de si. Mas mais ainda do que o sexo, que mistura apenas os seus dois corpos, ela sente que o diálogo, olhos nos olhos, é que os aproxima da solvência completa, pondo em palavras explícitas o que o nublado dos sentimentos deixa apenas sentir.
– É preciso falar o amor, dizê-lo, para que o amor deixe de ser um mero acto mecânico. E ao fazê-lo conseguimos que a nossa nudez deixe de ser apenas superficial e o prazer da nossa entrega englobará todo o nosso ser.
– A nudez completa mata o mistério, Sofia, e o conhecimento total do outro anula o prazer da descoberta, e é disso que se alimenta a paixão. E depois, tem que haver sempre uma reserva de intimidade para preservarmos a nossa individualidade.
Mas Sofia precisa dessa partilha íntima para tornar substantiva aquela relação tão efémera. Existe em especial uma área obscura em que jamais conseguiu insinuar-se para além da superfície. Como se despertasse uma dor incógnita. Uma dor clandestina.
– Como foi isso?
– Isso, o quê?
– Isso da tua perna. – E o olhar dele a responder com o silêncio. Levanta o olhar, desvia-o para qualquer coisa, ou na falta de um objecto, olha para o infinito, e com um sorriso nervoso faz-lhe entender que aquela é uma área de total insolvência, um assunto que cai na reserva da intimidade individual.
– Isto é uma medalha de guerra, mas se não te importas não falemos disso agora.
Hoje parece demorar mais no chuveiro do que habitualmente; é sinal que o encontro lhe deu mais prazer, que não tem pressa. Hoje vai parar um pouco junto dela antes de sair. E os pensamentos dela como fotos atiradas à sorte para cima de uma mesa.
Naquela tarde de um outro verão, ele a aproximar-se rua acima, com aquele andar de animal ferido, fazendo esforços para ter um porte digno, e Sofia a imaginá-lo tombado algures em África, de arma na mão, arrastando-se ferido sobre o pó de uma picada num acto de bravura, desesperado e dramático.
Algum tempo depois, a nudez do seu corpo exibindo as marcas desses tempos violentos. Como se fosse um atestado da sua condição de macho dominante. E ela a sua fêmea natural, acima de qualquer convenção social, conhecedora da cartografia íntima dessas marcas secretas.
– Como foi isso?
– Isso, o quê?
– Isso da tua perna. – E o olhar dele em busca de um objecto onde pudesse pendurar-se.
Ela deixa-o sempre tomar banho primeiro, gosta de ficar deitada sentindo o corpo abandonado à lassidão que se segue ao prazer que ele lhe dá, como um prado que conserva o calor de um dia de verão quando a tarde já arrefece.
Ele sai da casa-de-banho já vestido. Senta-se a seu lado.
– Gosto de te ver assim, ainda suada.
– Gostas? É porque a sensualidade é feita de desequilíbrios.
– Ai é?
Ela sente que pode conduzir o diálogo de modo a voltar ao assunto sem ele o perceber antecipadamente.
– Sim. É como na Dinâmica. Se algo se encontra demasiado estável não se moverá.
– Estou a ver. – Disse ele só por simpatia, meio distraído, sem perceber a relação.
– Com a Estética é a mesma coisa, tem que haver algo desequilibrado, assimétrico; uma linha a mais, ou a menos, uma cor que destoe, um som que arrisque a afinação, uma palavra que desafie a gramática; ou tudo não passará de um exercício sem emoção.
– Estou a ver. – Ele, agora surpreendido com tanta eloquência por um motivo tão banal.
– Por exemplo, um rosto muito simétrico pode ser agradável mas ganha logo em sensualidade se essa harmonia excessiva for desequilibrada por um simples sinal ou cicatriz.
Fez-se um pequeno silêncio, e a palavra cicatriz ficou no ar como uma badalada que continua a ouvir-se muito depois de ter soado. Depois ficou apenas o ruído monótono da chuva na varanda a realçar o silêncio.
O rosto dela ganhou luz preparado para falar e o dele perdeu toda a expressividade, a preparar-se para ouvir. A inteligência pode ser uma vantagem, quando se quer perceber alguma coisa, mas é sempre um grande obstáculo quando se quer esquecer.
E depois quando ela disse: "A primeira vez que vi essa tua perna nua, achei que eras alguém especial, que tinhas uma história, que tinhas densidade; que não te esgotarias na amizade, no sexo…", ele levantou-se enquanto o ruído da chuva enchia aquele quarto de silêncio.
Apalpou os bolsos à procura do maço de tabaco, num gesto que abandonara há anos, e sentiu-se desarmado. Não seria possível terminar aqui a conversa sem perder a serenidade.
Olhou-a de frente. – Acredita que há desequilíbrios que não têm dinâmica nem estética nenhuma. Há cores que destoam dentro de um homem e sons que desafinam a sua sanidade mental, a tal ponto, que parecer-se alguém especial porque se teve uma história que deixou uma marca no seu corpo é algo pouco mais do que fútil. Não fazes ideia de como se pode ansiar pela mediocridade, de como se pode desejar ser um entre uma multidão anónima; para quem, o mais longe que foi, foi em passeio; para quem, a maior emoção vivida, foi vivida como espectador; para quem nada em si o ligue irremediavelmente a um caminho que desejaria desesperadamente nunca ter percorrido. Tanto, que é possível matarmos esse que fomos, um suicídio de personalidade, e seguirmos pela vida fora tentando renascer como outra pessoa.
Dar-te prazer saber desse que fui, é como se me desse prazer a mim falar de uma violação de que tivesses sido vítima, só pela volúpia egoísta de te poder consolar.
Tu não podes entender o que foi ter nascido nos nossos olhos, a pouco e pouco, o brilho sinistro da morte. Como uma insanidade moral, porque o soldado faz a guerra e a guerra faz o soldado. Chegámos àquilo a que se pode reduzir um ser humano. Chegámos ao patamar da animalidade.
– Mas tu lutaste pela sobrevivência, mataste para não morrer.
– Não percebes nada do que estás a falar. Sabes… o melhor soldado não é aquele que luta por um ideal, nem o que luta para sobreviver, o melhor soldado é aquele que luta sabendo que vai morrer. Não é a esperança que faz um soldado matar, é o desespero.
As guerras não têm estética possível, porque só têm um lado: o lado abjecto da chacina.
A cor quente do sangue a destoar na frescura verde da paisagem. O terror a desequilibrar a excessiva harmonia do rosto dos inocentes que nos olham antes de morrer à procura de um resíduo de humanidade.
Tragicamente belo não é? No fim da ópera o público abandona a sala e regressa ao ócio dos salões; no fim do romance fecha-se o livro e regressa-se ao conforto do sofá; no fim do filme desliga-se a televisão e toda a tragédia vai para onde foram os nossos pesadelos de infância ao acordarmos em conforto e segurança na cama dos nossos pais; mas, e se não tivermos como desligar os nossos pesadelos? E se a nossa história for o monstro que temos fechado na cave da nossa própria casa, enquanto tentamos dormir em paz no quarto por cima dele? Pior: esse monstro é a parte de nós que já morreu, à espera que abram o alçapão, para vir tomar posse do que resta de nós.
Procurou de novo o tabaco nos bolsos, como se não tivessem passado dez anos desde que deixara de fumar, como se uma parte de si que tivesse morrido numa guerra antiga tivesse vindo tomar posse do seu corpo.
Sofia, ainda nua, ainda suada, ainda sentada na cama; levantou o braço para o prender quando recebeu o beijo de despedida, mas em vez disso, cobriu apenas o corpo como se tivesse acordado nua na presença de um estranho. E ficou assustada. E ficou a vê-lo sair como alguém que foge para procurar refúgio numa multidão anónima. Os seus passos a perderem-se pelas escadas abaixo e a confundirem-se com aquela chuva de verão que fervilhava na varanda.
O silêncio com a voz ciciante da chuva. O corpo subitamente subtraído a uma violação. Os pensamentos, agora, como fotos exibidas num diaporama, uma após outra, ordenadas, obsessivas, explícitas, a acusarem-na de um caminho que não deveria ter percorrido. A mostrarem como o racionalismo pode transformar os sentimentos em puro cinismo.
Sofia é uma mulher feliz, demasiadamente feliz para entender que a curiosidade pode ser tão cruel como a besta que descobre hibernando no fundo da alma humana.
Quando saiu para a rua sob a chuva tristíssima de verão viu a ondulação voyeurista da cortina do segundo esquerdo e uma sombra de censura ficou muito tempo a assombrar-lhe os passos pela escada abaixo, até se perder, ela também, por entre a multidão anónima.

Sunday, November 1, 2009

A Visita


Sei que estás a pensar "Ó Zé, cala-te", mas temos tempo de ficar calados; é preciso dizermos alguma coisa para termos a certeza que ainda andamos por aqui. Sabes lá a falta que me faz ouvir-te cantar. Tu cantavas muito bem Etelvina; eu às vezes queria acompanhar-te, mas começava a desafinar e tu rias-te de mim, e eu ficava sem jeito. Depois deixaste de cantar. Se vinhas a cantar na rua, calavas-te mal entravas em casa… Não faças essa cara, pronto, não falo mais nisso.
Parecem boas as maçãs que me trouxeste. Preferia flores. Sim, eu sei, nunca dei valor às tuas flores, mas aqui não há flores, aqui falta um bocado de cor às coisas. E a cor faz-me falta.
Olho para trás e parece-me que a minha vida foi quase toda a preto-e-branco. No baile da Mamarrosa tu olhavas para o chão quando eu olhava para ti, e eu não tinha coragem para te convidar. Eu tinha as mãos cozidas com o cimento das obras, encortiçadas pelo trabalho, e ele tinha mãos de quem não fazia nada; quando tiravas os olhos do chão, Etelvina, era para ele que olhavas, e quando olhavas para ele o teu rosto mudava como uma janela onde bate o sol. Às vezes também olhavas para mim, mas quando olhavas para mim, nada no teu rosto mudava. Eu não tinha luz suficiente para te iluminar Etelvina. Parece-me que vivi sempre à sombra até te ver sorrir.
Porque será que um dia sorriste para mim, Etelvina? Porque foi que um dia os teus olhos pousaram em mim um foco de luz? Nesse dia descobri que o mundo era a cores.
Agora a cor faz-me falta. O médico perguntou-me "O que é que o amigo Sousa sente?" e eu: Sinto falta de cor. E ele ficou a olhar para mim como se eu tivesse um tomate esborrachado na testa.
Ao princípio parecia um rato a roer-me a alma, depois o rato transformou-se num cão danado sempre a roer-me a alma. E eu a ficar vazio por dentro, à medida que ele me comia a alma. Agora já não sinto a falta da alma; os remédios encheram o espaço vazio como se eu fosse um boneco de trapos; mas falta-me a cor. Traz-me flores Etelvina. Quando voltares a visitar-me traz-me flores. Mas as maçãs parecem boas.
Em África lembrava-me bem das tuas canções e ouvia-te cantar na minha cabeça. Foi isso que me valeu na guerra, as canções que tu cantavas dentro da minha cabeça. Agora já não me lembro. Será que um dia eras capaz de cantar para mim?
Que estás a ver? Aí da janela só se vêem os telhados da enfermaria das mulheres, não há nada pra ver. Às vezes fico aí horas a fio como tu estás agora, e de vez em quando passa uma ave. Quando isso acontece só não fico feliz porque já não me lembro como é. Mas alguma coisa muda cá dentro quando passa uma ave.
Sinto tanta solidão Etelvina. A maior solidão não é quando sentimos falta dos nossos entes queridos, dos nossos amigos, dos outros; mas quando sentimos falta de nós; quando deixamos de saber de nós. Se ao menos tivesse a memória de uma bela história de amor para me fazer companhia, mas a nossa história parece ter sido feita de coisas que não aconteceram Etelvina. Devia ter emigrado contigo como tu querias, em vez de ir para a guerra, devíamos ter ido à procura de uma história para nós; devíamos ter feito, ao menos, uma grande viagem.
Ah, que é isso? Não fiques assim. Aqui é proibido andar triste. Vem logo alguém perguntar se tomámos os remédios, e se não nos pomos com boa cara reforçam-nos a dose não tarda nada.
Mas o pior é a falta de cor. As pessoas não têm cor, as paredes não têm cor, a comida não tem cor.
Mas de resto estou bem. Sabes, até estou bem demais. Não me dói nada. Nada me incomoda. Faz-me falta ter alguma coisa, mesmo que fosse má. Uma dor, ou assim. Quando me sentia só, em África, eu ferrava as unhas na pele para ter a certeza que ainda estava vivo, agora parece que é proibido sofrer, e dão-me remédios para eu não sentir nada. É por isso que passo aí horas esquecidas à espera que passe uma ave. É que me tiraram tudo, Etelvina. Agora tiraram-me até a dor. Faz-me falta ao menos um pequeno desconforto. Será que seria muito pedir um pouco de chuva a cair-me no rosto?
Mas o médico acha que vai ser difícil os gajos lá em cima acreditarem que isto começou em África. O pior é para ti, sempre era uma ajuda, que o teu patrão, à medida que envelheceste, deixou de te aumentar. Ah, não olhes para mim assim, que eu sempre soube e não te levo a mal. Sabes lá o que um homem guarda cá dentro quando tem um espaço vazio no lugar da alma. Quando um homem aprende a aceitar a morte como uma coisa sem importância.
Mortes sem importância. Como espantalhos caídos no capim. Era como se nunca tivessem vivido. E eles não acreditam que isto começou em África.
É um crime tirarem um homem do lugar onde vive e atirarem-no para o fundo do porão de um navio e mandarem-no para a matança como um porco. E o lugar onde eu vivia eras tu Etelvina. Lembro-me do teu corpo como um lugar aonde podia regressar no fim do dia. Olhava nos teus olhos, Etelvina, e sentia que tinha chegado ao meu destino.
O furriel dizia que se eu soubesse escrever era um poeta. Nunca percebi se era a gozar comigo. Mas percebo que quando deixei esta terra para ir para a guerra deixei o teu corpo desabitado e um homem não pode nunca deixar o seu lugar desabitado, nunca deve abandonar a sua casa, e tu eras a casa onde eu queria viver Etelvina.
Às vezes chegava um aerograma teu e eu ficava feliz. Nessa altura ainda me lembrava como era ser feliz. Era como ver todas as aves do céu; era como sentir a alma de todas as cores. E o furriel dizia-me "Ó Sousa, hoje estás de alma lavada". Mas à medida que o tempo foi passando a alma foi-me ficando encardida.
Eu sei que isto começou em África, porque uma ocasião olhei para um aerograma teu e reparei que as tuas palavras não tinham cor nenhuma, pareciam escritas com cinza. Nesse dia não consegui ouvir-te cantar dentro da minha cabeça. Foi a partir daí que alguma coisa cá dentro me começou a comer a alma.
Quando eu fui embora, o meu pai com vergonha de estar a chorar. A minha mãe a dizer "Meu filho. Meu filho. Meu filho", e tu a olhares para o chão como no baile da Mamarrosa.
Eu podia ter fugido pra França como o meu primo, mas eu pensei: seja o que deus quiser, eu sou um paz d'alma que não faço mal a uma mosca, mas vou cumprir a minha obrigação. Maldita a hora, aquilo era porrada de criar bicho e eu queria voltar a ver-te Etelvina, por isso fiz tudo para sobreviver.
Mas sobreviver a uma guerra não é grande coisa, Etelvina. Quando os mortos não têm importância de que vale sobreviver? Além disso, Etelvina, eu não sobrevivi completamente, alguma coisa minha lá morreu.
Quando voltei, o meu pai envergonhado das lágrimas novamente. A minha mãe novamente a dizer "Meu filho" vezes sem conta, e tu novamente sem conseguires olhar nos meus olhos, como no baile da Mamarrosa. E eu olhava para vocês e pensava que ainda não tinha acabado de chegar, que uma parte de mim tinha ficado para trás, muito, muito para trás.
Ainda se ao menos nos ensinassem a ser civis de novo, como nos ensinaram a ser soldados, mas não. Durante meses e meses eu continuei a ser apenas um soldado no meio dos patos e das galinhas. Um soldado que tinha perdido a arma algures. Acreditas que sentia falta da arma? Quando se anda na guerra, Etelvina é preciso mais tempo para conseguir trazer a alma toda de volta.
E depois, quando voltei, nunca mais te ouvi cantar para mim, Etelvina. Se vinhas a cantar na rua, calavas-te mal entravas em casa. Eu sei, eu sei; não é fácil viver com um homem que vai ficando oco por dentro.
Esse telhado é como um espelho, Etelvina, olho-o e vejo o vazio que vai dentro de mim. Mas quando tenho sorte, passa uma ave e fico um nadinha mais perto da felicidade.
Deve estar a passar o efeito dos remédios. Daqui a nada vem o enfermeiro e o vazio logo desaparece, e depois vou ficar atafulhado com um monte de farrapos cá dentro.
Onde estás? Já foste embora? Ah Etelvina… Ia jurar que tinhas vindo visitar-me e que me tinhas trazido maçãs. Se ao menos me escrevesses um aerograma. Pareciam boas, as maçãs.
Mas traz-me antes flores Etelvina.
Trazes?

Tuesday, September 29, 2009

A Persistência da Dor

No chão da gare da Curia a minha sombra imita um flamingo enquanto eu me equilibro pondo a perna amputada sobre a canadiana, de modo a usar ambas as mãos para acender o cigarro.
As pessoas passam por mim e abrandam a voz como se faz quando somos surpreendidos a meio de uma conversa por uma visão inesperada.
Algumas a olharem para trás, depois de passarem.
Uma folha d' O Século que o vento não consegue descolar do chão. Levanta-lhe uma ponta, fá-la ondular mas ela não sai dali. E, vinda não sei de onde, uma canção dos Procol Harum: Saltitávamos o alegre fandango, Fazíamos cabriolas pelo chão; Eu sentia-me um pouco enjoado Mas as pessoas pediam mais…
O vento a brincar com o jornal. Uma velhinha a descer da carruagem. As pessoas impacientes à espera que ela desimpeça o caminho. E a canção com sonoridades barrocas e letra psicadélica: Quando a moleira contou a sua história O rosto dela, a princípio só assombrado, Ficou branco como a cal da parede…
A velhinha a aproximar-se de mim olhando para a minha mochila no chão como quem vem em meu auxílio, e eu, num movimento que lhe deve ter parecido acrobático, rodo sobre o único pé, pego com ambas as mãos na mochila, as canadianas presas aos braços pelos apoios, volto a rodar em sentido contrário, e depois de encaixar a mochila às costas passo por ela sem pudor, ignorando a crueldade da minha exibição. Olho para trás e vejo-a tristíssima a ver-me a afastar, andando duas vezes mais rápido do que ela. Daria decerto uma perna para ter a minha idade e o meu vigor. Abrandei a marcha envergonhado, como se por andar mais lentamente agora, eu pudesse diminuir o meu sentimento de culpa.
Cá fora já não resta nenhum táxi, e eu volto a entrar no átrio da estação para procurar um banco. E a velhinha passa por mim. Os nossos olhares cruzam-se por instantes, e ela sorri-me com a doce complacência dos que já viram de tudo na vida, o que aumenta o meu remorso.
Só encontro onde sentar-me na gare.
Há luz demais, tenho que semicerrar os olhos para ver para além da sombra. A folha de jornal, ao longe, inundada de luz, como uma foto tirada em sobreexposição.
A folha a fazer negaças ao vento.
A música a arremedar uma suite de Bach, os versos delirantes: Por entre as cartas de jogar Indaguei se não seria Uma das dezasseis virgens vestais Que se dirigiam para a costa E embora tivesse os olhos abertos Bem os podia ter fechados.
A música repetitiva, que afinal sai pelas frinchas de uma porta a dizer "Chefe da Estação", começa a fazer-me sono, e uma sensação de desamparo toma conta de mim.
Parece que iniciei aqui uma viagem à volta do mundo, que fui apanhando coisas pelo caminho até constituir um enorme património, que depois, por cansaço e preguiça, por descuido e negligência, fui perdendo a pouco e pouco, e que agora, aqui de novo, terminada a viagem, disso nada resta, para além de algumas esparsas memórias. Memórias de alegrias amargas e perigos letais reduzidas a algumas imagens dispersas. Memórias de amigos e inimigos de que acabarei por me esquecer completamente.
Tenho que me por de pé para não adormecer.
De Santa Apolónia até aqui também fiz de tudo para não cair no sono, dado que sou perito em não acertar com a estação onde quero sair. Já fui parar sem querer a Campanhã, e depois, tomado o comboio em sentido contrário, fui ter à Mealhada, quando o meu destino era o quartel de Paramos, mais ou menos a meio caminho.
Assim, fiz de tudo para me manter acordado, mas os meus olhos acabavam sempre por descaírem mortiços para o meu sapato, solitário entre as duas canadianas, que parecia ter qualquer poder hipnótico. E lá fora a paisagem numa vertigem.
– Se olhares para as botas com atenção o comboio pára.
– A sério avô?
Desde a minha infância a ilusão egocêntrica da biqueira do meu sapato a parar o comboio e a fazer a paisagem correr para trás. Se existissem comboios no tempo de Galileu talvez ele não tivesse sido humilhado pelos sinistros juízes da Inquisição, e talvez lhes tivesse sugerido que dessem mais atenção às biqueiras das botas do que à inspiração divina, pois que mais vale encontrar as soluções para os problemas transcendentes nas coisas insignificantes, do que justificar até as coisas mais insignificantes com a transcendência.
Depois, finalmente, a paisagem da torre da capela de Aguim com o Buçaco ao fundo como um rosto familiar, a dizerem-me que cheguei finalmente a casa.
Que longas que são as viagens que têm uma guerra pelo meio.
A torre da capela de Aguim apareceu ao longe na paisagem como um embuçado em pleno dia, e ao fundo o dorso da Serra do Buçaco tão esbatido que mal se distinguia do céu. Se fosse eu a pintar aquele quadro, punha um pouco mais de terra-de-sena para que um tom quase imperceptível de púrpura criasse a ilusão da distância; assim parecia que estava tudo no mesmo plano, e a torre branca da capela da N.ª Sr.ª do Ó parecia pintada sobre um papel de cenário.
Agora estamos finalmente sós na gare da estação da Curia: eu à espera que venha um táxi, e a folha de jornal que o vento não consegue tirar dali.
Então, repentinamente, um comboio passa sem parar. Os rostos a repetirem-se janela após janela como numa fita de um filme. Um ribombar contínuo de mil marretas em mil bigornas, que estilhaça o silêncio e bloqueia a atenção, fazendo ignorar tudo o resto. Um pânico repentino alvoroçando a folha do jornal atirada brutalmente contra o tecto da gare.

Por fim, fica apenas a aragem revolta e o silêncio. Mas dentro de mim permanece o eco, ou a memória do som como um desassossego da alma, tal como a dor permanece para além da bofetada.
Sim, toda a dor sobrevive muito tempo ao golpe. Mesmo quando se fecham as feridas; mesmo quando o riso regressa aos rostos; mesmo quando um sorriso sábio e complacente nos redime do nosso cruel egocentrismo; mesmo quando regressamos finalmente a casa e deixamos uma guerra longínqua para trás.
E a folha de jornal inquieta ainda, já o comboio vai longe…

Monday, July 20, 2009

A Enfermeira que Vinha do Céu


Se o comboio avança em direcção à Gare do Oriente porque me dá a ideia que recuo no tempo? Daqui a pouco uma mulher por entre a multidão avançará para mim empunhando a boina verde de uma farda há muito desmobilizada, distintivo, noutro tempo, de uma tropa de elite, identificação hoje para um encontro agendado.
Todo o encontro cria uma ruptura. O que era até ali deixará de o ser como era. Passamos às vezes por uma pessoa na rua e tudo muda na nossa vida. Alguém que nos diz bom-dia de uma forma diferente, ou nos dá um sorriso, ou nos olha com um brilho de inteligência no olhar e nos garante que o Universo é habitado. Nunca agradecemos a uma pessoa assim que muda a nossa vida. Ela esfuma-se no tempo. Afunda-se na vida. Perde-se no labirinto do mundo.
Se voltamos a passar por ela nem a reconheceremos. Ela apenas passou por nós, porém, ao passar por nós fez-nos desviar a atenção, iluminou com um relance do seu olhar um pensamento sombrio, e esse seu pequeno impacto fez-nos atrasar o minuto fatal em que iríamos cometer um erro irremissível; desviou a nossa trajectória o suficiente para salvar o nosso dia.
E se uma pessoa assim tiver interferido na trajectória da nossa vida de uma forma consciente e calculada por ter imposto a si mesma esse dever, quando tudo o mais à sua volta se resumia à primária luta da sobrevivência? Uma pessoa cujo impacto na nossa vida nos desviou da trajectória da própria morte.

Eu daqui a pouco a descer pelas escadas rolantes, e o ribombar dos comboios por cima de mim. E a ideia que recuo no tempo. E a certeza que vou encontrar no piso inferior uma longa fila de veículos militares.
E eu, eu fora de mim, imaginando-me no lugar do piloto do helicóptero a calcular o espaço entre os ramos das árvores para aterrar na picada, e a ver um soldado prostrado com as marcas da explosão a irradiar do seu corpo.
Eu agora a olhar para cima com os olhos do enfermeiro Costa. Corajosamente desarmado, segurando o saco do soro e olhando para o céu em busca do socorro.
Eu agora envergando a T-shirt branca e sentindo o coração ansioso da enfermeira no meu peito. Eu ansioso por chegar, ansioso por me antecipar à Morte.
Eu agora no meu próprio corpo, deitado de costas no chão a ver chegar a enfermeira correndo para mim.
Eu com frio.
Tanto sol e eu com frio.
Tanto frio.

Entretanto voltei: o presente impõe-se à memória e traz-me as linhas geométricas da cidade vistas da janela do comboio. Se foi Deus que fez o mundo, não criou uma única linha recta, uma só curva perfeita, ofereceu-nos o caos, e nós vamos destruindo essa aconchegante liberdade com a árida prepotência da geometria. Ou então são saudades de África.
Imagino a Gare do Oriente, onde o comboio vai parar dentro de minutos, que tantas vezes achei uma arrojada criação fitomórfica a quebrar a inorgânica monotonia urbana, e que agora antecipo como um desenho repetitivo, reduzido ao arremedo simétrico de um bosque. São saudades de África: dorme-se uma noite na desordem corajosa da mata eterna, e aprende-se a desprezar a fútil esquadria dos jardins, a domesticada ordenação da arquitectura urbana.
Quem nos vir daqui a pouco, frente a frente, eu e a enfermeira pára-quedista à mesa de um restaurante, jamais imaginará que o que nos separa não será o tampo da mesa, serão 37 anos de vida e uma guerra. A mesma guerra que fez com que as trajectórias das nossas duas vidas se encontrassem.
Há, evidentemente, alguns factores que reduzem o grau de imprevisibilidade desse nosso primeiro encontro; mas neste momento, quando o comboio já está quase parado na plataforma de embarque da Gare do Oriente, só consigo pensar que foram precisos largos séculos de história colonial e duas trajectórias erráticas, como erráticas são sempre as trajectórias dos seres humanos, para nos encontrarmos no preciso lugar onde uma mina anti-pessoal terrestre aguardava há alguns dias pela minha bota esquerda. E isso é algo que transcende o meu poder de cálculo de probabilidades.
E onde aconteceu tudo isso? Numa picada perdida do norte de Moçambique ou num lugar recôndito da minha imaginação?
Eu com frio e o sorriso cálido da enfermeira. Eu na solidão absoluta perante a Morte e um sorriso que me garantia mais do que a certeza de que o Universo era habitado. A certeza que, mesmo quando tudo parece ter descido ao mais baixo patamar da humanidade, a esperança pode ser-nos trazida por um cândido sorriso de mulher.
E o Alfa parou.
Não sei em que ano parou. Não sei em que mundo.
Vou sair por aquela porta para a plataforma de embarque com a convicção de que a realidade não me será suficiente. Mas a realidade nunca é suficiente: é para isso que há sonho, música e poesia.
Era uma vez uma guerra.
Era uma vez uma enfermeira que vinha do céu.
Ela chegava e a esperança de vida aumentava.
Vinha do céu
e pousava de helicóptero
com subtilezas de anjo.
Ultrapassava a Morte
e levava-nos
num abraço de Pietá.
Amava-nos sem saber
a enfermeira da T-shirt branca.


A Grande Prostituta pairava sempre sobre nós, e quando tombávamos ajoelhava-se para nos invaginar. Às vezes o enfermeiro Costa tentando a ternura: - Não me morras filho da puta! E quando a vida não era mais do que um fio, ansiávamos que a salvação viesse do céu.
E vinha!
Vinha de T-shirt branca e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.
E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta a dor e o medo da morte mas não resiste à generosidade de uma mulher.
Levou o Lemos, levou o Raimundo, levou-me a mim. E um dia, quando parecia que tudo o que passei na guerra se tinha desvanecido para sempre, dei por mim a desenhá-la com palavras, como personagem de um livro. Com palavras que trouxe a vida inteira comigo.
Hoje a mulher por detrás da personagem ocupará o seu lugar aferindo a ficção pela realidade, deixará de ser uma silhueta desvanecida de uma foto antiga no heliporto de Mueda, a personagem construída a partir da fantasia literária e das memórias difusas de um velho soldado, a personagem que um leitor do livro levou a sério e procurou no labirinto do mundo até a encontrar.
Sairá hoje das páginas do livro para falar com o autor.
E o Alfa parou.
- Olá Piedade!
- Olá Manuel!

Tuesday, April 28, 2009

A Estrada

Virou-se para trás como se alguém a tivesse chamado, e fitou a estrada a afunilar até desaparecer numa curva distante entre pinheiros.
Virou-se para trás como se o caminho que levasse não levasse a lugar algum.
Virou-se para trás como se não houvesse esperança alguma à sua frente.
Se ao menos pudesse sentar-se para ganhar ânimo, mas a estrada era como a sua vida: vinha de algures para além de uma curva e seguia em frente até outra curva, sem nada pelo meio.
E a estrada deserta. E o corpo sem ânimo como se tivesse acabado ali algo de fundamental e irrecuperável.
Do lado esquerdo o terreno subia, subia, até completar a Serra do Buçaco, para o lado direito o terreno descia, descia, até se confundir todo por entre os campos e as aldeias, sem ordem nenhuma nem beleza. E ali, como um risco feito com um pau na terra, estava a estrada, como se a sua única função fosse dividir o mundo ao meio sem levar a lado nenhum. E a meio caminho entre as duas curvas, estava ela.
Houve um tempo em que aquela estrada a faria sonhar, quando o seu corpo era todo ele harmonia, e o simples desnudamento do arco ogival de um seio fazia com que os homens nele convergissem o olhar como se fosse uma luz que se tivesse acendido de repente.
Foi num momento assim que ele veio todo sem jeito, atraído pela réstia do seu seio, enquanto no coreto os músicos se esforçavam por tocarem todos a mesma música, e todos ao mesmo tempo.
Um dia, algures por ali, entre o desalinho complicado das aldeias e o cume simples da Serra, ela acendera-lhe de novo um seio, e depois encandeara-o com a luminosa nudez do seu corpo.
Nenhum homem sabe como é forte o corpo de uma mulher, como é enganadora a sua aparente fragilidade. Ele desfizera-se da roupa atabalhoadamente, afogueado de paixão, investindo sobre ela com gestos toscos de varrasco, resfolegando como um minotauro tresloucado pelas hormonas, e ela acolhera-o suavemente como a capa do toureiro acolhe as pontas erectas de um touro enraivecido; uma e outra vez, uma e outra vez. Nenhum homem sabe como é sábia a aparente complacência e submissão de uma mulher, que acaba sempre por dominar o mar revolto que há no desejo do macho, até ele se esvair em espuma, desfeito e exausto, arfando indefeso sobre a praia morna do seu corpo. Nesse dia ele passou a pertencer-lhe.
Os olhos ainda colados na curva da estrada atrás de si pareciam medir a distância já percorrida, ou mais que a distância: o tempo. Não há maior ilusão do que a de pensarmos que o tempo passa. A vida é uma estrada como esta, parada entre o vale e a montanha e nós é que vamos caminhando de curva em curva até nos consumirmos e ficarmos assim a olhar para a última curva lá atrás, como se pudéssemos viajar no próprio olhar para o passado.
Há quanto tempo ela o fizera seu, ali naquela mata? Há uma eternidade. Há quanto tempo, algum tempo depois, o vira partir de farda verde sujo e mochila às costas para uma guerra que ela nem sabia que existia? Ontem? Porque será que as coisas más que recorda lhe parecem próximas, e as boas distantes?
Nenhum homem sabe a guerra que uma mulher trava sozinha sem armas nem defesas, enquanto os homens, que nunca deixam totalmente de ser crianças, se entregam estupidamente à mais infantil e cruel das brincadeiras, que é a de se tentarem matar uns aos outros por motivos que julgam elevados e por objectivos que consideram honrosos.

O pior que acontece com os nossos sentimentos é não sabermos se devemos amar ou odiar. O pior ainda, é quando sentimos o amor e o ódio pela mesma pessoa. Jamais o amor se lhe apagaria da alma por aquele que um dia ali se atirou a ela como predador e acabou prostrado no seu corpo como presa. Jamais o ódio, por ter sido duas vezes traída por ele, se desvaneceu. Uma primeira vez, na distante tarde de Outono em que se foi afastando por aquela estrada até ter desaparecido naquela mesma curva ao fundo, com aquele ar de guerreiro garboso que parte à aventura pelo mundo fora e a deixava a ela ali, como uma sombra no meio da estrada, como uma peça de roupa de todos os dias que se despe para envergar a sinistra roupagem de matar, aquela farda da hedionda cor do esterco. Agora, olhando a mesma curva da estrada lá longe, parece que nunca saiu daqui onde está, durante estes anos todos, como um envelhecido Narciso a mirar a ilusão de uma juventude irremediavelmente perdida. Mas a pior traição foi a segunda, a traição de ter-se ele deixado morrer por lá.
Um amor sem história, o dela. Ele levou a sua história na mochila por aquela estrada fora e por lá ficou; nem os seus ossos, essa pátria por quem foi lutar, lhe devolvera. O corpo dele ficou por lá sem uma praia morna onde pudesse reanimar, e o seu corpo ficou aberto como um golpe de navalha que não cicatrizou nunca.
Muitas vezes acendera ainda a curva orgulhosa do seu seio, muitas vezes iluminara de nudez o seu corpo todo, muitas vezes transformara predadores em presas, mas jamais conseguira fechar aquele golpe aberto desde o dia em que o vira desaparecer naquela curva, de mochila ao ombro sem uma só vez olhar para trás.
E a flecha do arco de ogiva perfeita dos seus seios foi rebaixando a pouco e pouco até eles perderem toda a altivez das catedrais góticas e se acomodarem na forma modesta e acabrunhada do arco abatido dos templos românicos, à medida que a luminosidade do seu corpo se embotava sem mais fulgor que a palidez de uma lua triste.
Levou uma eternidade a retirar os olhos da curva da estrada e a voltar-se para a frente, para a outra curva ainda distante, e sentiu sem sombra de dúvida que nunca haveria de dobrar mais aquela curva da estrada. O seu corpo fechara-se finalmente. A guerra que ela soube que existia quando sentiu o golpe de navalha do abandono, há muito que terminara, mas a guerra que travara desde então, durava até hoje, muitos e muitos anos depois. Porém o seu corpo parecia ter finalmente deixado de lutar.
Que nos perdoem as mulheres se não tivemos coragem. Mas que o seu perdão não se esqueça dos que tivemos coragem, e não usámos a coragem para lutar apenas por elas. Tanta mulher como praias ansiosas pelo mar da nossa bravura e os homens distraídos com guerras!
E ela parada. E a estrada deserta. A estrada entre duas curvas: o passado perdido e o futuro inatingível.
O coração tão sereno e a doce vertigem de quem vai adormecer.O seu corpo caiu em combate, vítima de uma guerra em que não combateu. O seu corpo, como uma praia morna e luminosa que foi, vai agora perdendo toda a luz, e a pouco e pouco vai arrefecendo.
E a pouco e pouco vai arrefecendo.

Friday, January 23, 2009

A Doença da Memória

Para os lados do mar o céu desenha uns fiapos cinzentos por entre os tons ainda quentes do pôr-do-sol, e ele vira-se como se estivesse interessado em aproveitar os últimos alentos de vida da tarde, mas estou em crer que foi um acto reflexo, como se respondesse a um chamamento.
A tarde morre em silêncio, mas o silêncio tinha uma voz. O silêncio tinha a voz do mar. Mas ele ouvia o silêncio por baixo dessa voz. Uma voz fragorosa e depois fervilhante; uma voz materna, que primeiro ralha e depois arrulha. Mas por baixo do silêncio feito dos sons, de todos os sons que povoam a vida, e que não ouvimos porque estamos entretidos a viver, existe o vazio. Ele está a ouvir esse vazio por baixo da vida. O silêncio da própria alma, como um buraco negro numa toalha branca, como um nódoa de morte caído no tecido da vida.
Levanta-se e caminha um pouco, olhando sempre para o lado do mar. Há muito que aprendeu a enfrentar esse chamamento sem voz. Chamamento não, talvez uma atracção, uma tentação; como um poço fundo a fazer vertigens.
Sente as mãos vazias, como se tivesse deixado cair uma ferramenta que agora lhe faz falta. Inúteis, as mãos, balançam ao lado do corpo e os olhos sempre olhando o mar. Sempre, sempre olhando o mar.
Um avião passa rasante junto à rebentação, encaminhando-se para a base de S. Jacinto, e o farol da Barra de Aveiro atira-lhe com um disparo de luz; depois risca a tarde num movimento circular como quem desvia o olhar embaraçado por aquele disparo inútil.

Ele encontra-se agora no chão do passeio, as mãos procurando a arma perdida, rolando sobre si próprio. O buraco de silêncio enche-se de gritos, de explosões e daqueles estalidos que os projécteis fazem quando passam sobre as cabeças dos soldados, mostrando que ainda estamos vivos dado que já passaram quando os ouvimos.
Outro avião, talvez um Fiat a julgar pelo som sibilante da turbina. E ele rasteja sobre a picada procurando camuflar-se atrás do capim. Tragam-me dilagramas que eu rebento com os filhos da puta! Os cartuchos das Kalashes vêm ter acima de mim. Eles devem estar perto… 
O estridular de uma gaivota em busca de poiso para passar a noite torna infrutíferos quaisquer esforços para resistir a uma emboscada, e lentamente os sons vão-se desvanecendo até que finalmente se ouve de novo a voz do mar.
 O sol deixou um rasto acobreado por sobre as águas e tudo começa a tomar os seus lugares, como se tivesse tocado a recolher e a praia toda se preparasse obedientemente para a noite.
Mete o vigésimo cigarro do dia na boca, acende-o e tira uma passa como quem toma um remédio. Olha mais uma vez o mar. Sabe que agora pode olhar o mar sem receio e sente um alívio enorme ao avaliar a imensidão daquela massa de água que o separa do passado. Não será por muito tempo; um dia ou dois, e de novo aquele vazio lhe fará lembrar que algo de si ficou para trás, como o último olhar de terror do inimigo abatido, como o apelo impotente do camarada de armas que não foi possível resgatar das mãos do inimigo. Então retomará a sua missão inacabada, uma e outra vez até que um dia ele próprio seja abatido neste combate sem quartel; por uma bala perdida, por uma mina traiçoeira, ou simplesmente pela vida.
Levaram quase um ano a fazerem dele um combatente, ensinaram-lhe tudo o que um pacato pedreiro precisava de aprender para se tornar alguém capaz de lutar até ao limite. De matar. E depois, no fim, no prazo de uma semana, esperaram que ele deixasse de ser um combatente, e simplesmente esquecesse, como se tudo não tivesse passado de uma brincadeira inofensiva, e voltasse a ser o pacato pedreiro que fora em tempos, como se a memória de um homem fosse um balão; mais fácil de esvaziar do que de encher.
Talvez a mulher tenha razão, talvez o melhor seja aceitar humildemente que está doente. Mas que sabe uma mulher sobre os perigos de uma emboscada, que sabem estes gajos todos aqui do que é ter que vencer o medo e seguir em frente, sempre, sempre em frente?
O farol da Barra, agora, já noite, parece querer desenhar uma circunferência de luz em redor de si mesmo, mas o foco perde-se na noite infinita. A verdade é que tudo sem excepção se perderá na noite infinita; é uma questão de tempo. Caminhamos todos em direcção à escuridão, à escuridão sideral ou à simples escuridão do corpo, a qual é cada vez mais difícil de iluminar de prazer. Como um mar nocturno. À excepção talvez, de algumas praias de ternura, alheias, inocentes, às escarpas cruéis da nossa memória. Como seria bom, ao menos, o riso senil do esquecimento tão próximo da inocência que nos permitisse aceitar a decadência sem luta. Uma tarde soalheira debaixo da sombra maternal de um castanheiro sem idade e ao longe a família feliz no caleidoscópio do sol. Talvez então, sem remorso nem raiva aceitássemos a doce prepotência divina, como uma mentira piedosa.
Talvez valha a pena, então, ser humilde e aceitar que a memória também pode adoecer, que às vezes um homem não pode levar tudo consigo, tal como nem sempre é possível resgatar um camarada de armas das mãos do inimigo.
Olhou o mar, mais uma vez olhou o mar, mas agora com um sereno cansaço, como se tivesse terminado uma longa viagem.
E a voz da mulher doce e terna devolve-lhe o mundo: - Ó Zé; estamos à tua espera para jantar.