Tuesday, April 28, 2009

A Estrada

Virou-se para trás como se alguém a tivesse chamado, e fitou a estrada a afunilar até desaparecer numa curva distante entre pinheiros.
Virou-se para trás como se o caminho que levasse não levasse a lugar algum.
Virou-se para trás como se não houvesse esperança alguma à sua frente.
Se ao menos pudesse sentar-se para ganhar ânimo, mas a estrada era como a sua vida: vinha de algures para além de uma curva e seguia em frente até outra curva, sem nada pelo meio.
E a estrada deserta. E o corpo sem ânimo como se tivesse acabado ali algo de fundamental e irrecuperável.
Do lado esquerdo o terreno subia, subia, até completar a Serra do Buçaco, para o lado direito o terreno descia, descia, até se confundir todo por entre os campos e as aldeias, sem ordem nenhuma nem beleza. E ali, como um risco feito com um pau na terra, estava a estrada, como se a sua única função fosse dividir o mundo ao meio sem levar a lado nenhum. E a meio caminho entre as duas curvas, estava ela.
Houve um tempo em que aquela estrada a faria sonhar, quando o seu corpo era todo ele harmonia, e o simples desnudamento do arco ogival de um seio fazia com que os homens nele convergissem o olhar como se fosse uma luz que se tivesse acendido de repente.
Foi num momento assim que ele veio todo sem jeito, atraído pela réstia do seu seio, enquanto no coreto os músicos se esforçavam por tocarem todos a mesma música, e todos ao mesmo tempo.
Um dia, algures por ali, entre o desalinho complicado das aldeias e o cume simples da Serra, ela acendera-lhe de novo um seio, e depois encandeara-o com a luminosa nudez do seu corpo.
Nenhum homem sabe como é forte o corpo de uma mulher, como é enganadora a sua aparente fragilidade. Ele desfizera-se da roupa atabalhoadamente, afogueado de paixão, investindo sobre ela com gestos toscos de varrasco, resfolegando como um minotauro tresloucado pelas hormonas, e ela acolhera-o suavemente como a capa do toureiro acolhe as pontas erectas de um touro enraivecido; uma e outra vez, uma e outra vez. Nenhum homem sabe como é sábia a aparente complacência e submissão de uma mulher, que acaba sempre por dominar o mar revolto que há no desejo do macho, até ele se esvair em espuma, desfeito e exausto, arfando indefeso sobre a praia morna do seu corpo. Nesse dia ele passou a pertencer-lhe.
Os olhos ainda colados na curva da estrada atrás de si pareciam medir a distância já percorrida, ou mais que a distância: o tempo. Não há maior ilusão do que a de pensarmos que o tempo passa. A vida é uma estrada como esta, parada entre o vale e a montanha e nós é que vamos caminhando de curva em curva até nos consumirmos e ficarmos assim a olhar para a última curva lá atrás, como se pudéssemos viajar no próprio olhar para o passado.
Há quanto tempo ela o fizera seu, ali naquela mata? Há uma eternidade. Há quanto tempo, algum tempo depois, o vira partir de farda verde sujo e mochila às costas para uma guerra que ela nem sabia que existia? Ontem? Porque será que as coisas más que recorda lhe parecem próximas, e as boas distantes?
Nenhum homem sabe a guerra que uma mulher trava sozinha sem armas nem defesas, enquanto os homens, que nunca deixam totalmente de ser crianças, se entregam estupidamente à mais infantil e cruel das brincadeiras, que é a de se tentarem matar uns aos outros por motivos que julgam elevados e por objectivos que consideram honrosos.

O pior que acontece com os nossos sentimentos é não sabermos se devemos amar ou odiar. O pior ainda, é quando sentimos o amor e o ódio pela mesma pessoa. Jamais o amor se lhe apagaria da alma por aquele que um dia ali se atirou a ela como predador e acabou prostrado no seu corpo como presa. Jamais o ódio, por ter sido duas vezes traída por ele, se desvaneceu. Uma primeira vez, na distante tarde de Outono em que se foi afastando por aquela estrada até ter desaparecido naquela mesma curva ao fundo, com aquele ar de guerreiro garboso que parte à aventura pelo mundo fora e a deixava a ela ali, como uma sombra no meio da estrada, como uma peça de roupa de todos os dias que se despe para envergar a sinistra roupagem de matar, aquela farda da hedionda cor do esterco. Agora, olhando a mesma curva da estrada lá longe, parece que nunca saiu daqui onde está, durante estes anos todos, como um envelhecido Narciso a mirar a ilusão de uma juventude irremediavelmente perdida. Mas a pior traição foi a segunda, a traição de ter-se ele deixado morrer por lá.
Um amor sem história, o dela. Ele levou a sua história na mochila por aquela estrada fora e por lá ficou; nem os seus ossos, essa pátria por quem foi lutar, lhe devolvera. O corpo dele ficou por lá sem uma praia morna onde pudesse reanimar, e o seu corpo ficou aberto como um golpe de navalha que não cicatrizou nunca.
Muitas vezes acendera ainda a curva orgulhosa do seu seio, muitas vezes iluminara de nudez o seu corpo todo, muitas vezes transformara predadores em presas, mas jamais conseguira fechar aquele golpe aberto desde o dia em que o vira desaparecer naquela curva, de mochila ao ombro sem uma só vez olhar para trás.
E a flecha do arco de ogiva perfeita dos seus seios foi rebaixando a pouco e pouco até eles perderem toda a altivez das catedrais góticas e se acomodarem na forma modesta e acabrunhada do arco abatido dos templos românicos, à medida que a luminosidade do seu corpo se embotava sem mais fulgor que a palidez de uma lua triste.
Levou uma eternidade a retirar os olhos da curva da estrada e a voltar-se para a frente, para a outra curva ainda distante, e sentiu sem sombra de dúvida que nunca haveria de dobrar mais aquela curva da estrada. O seu corpo fechara-se finalmente. A guerra que ela soube que existia quando sentiu o golpe de navalha do abandono, há muito que terminara, mas a guerra que travara desde então, durava até hoje, muitos e muitos anos depois. Porém o seu corpo parecia ter finalmente deixado de lutar.
Que nos perdoem as mulheres se não tivemos coragem. Mas que o seu perdão não se esqueça dos que tivemos coragem, e não usámos a coragem para lutar apenas por elas. Tanta mulher como praias ansiosas pelo mar da nossa bravura e os homens distraídos com guerras!
E ela parada. E a estrada deserta. A estrada entre duas curvas: o passado perdido e o futuro inatingível.
O coração tão sereno e a doce vertigem de quem vai adormecer.O seu corpo caiu em combate, vítima de uma guerra em que não combateu. O seu corpo, como uma praia morna e luminosa que foi, vai agora perdendo toda a luz, e a pouco e pouco vai arrefecendo.
E a pouco e pouco vai arrefecendo.

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