Monday, March 15, 2010

O Contágio da Felicidade

Quando chegou ao Sobreirinho, em vez de endireitar para o arraial da Nossa Senhora do Ó, meteu-se como quem vai para o Peneireiro, e eu ainda disse desconfiada: “Para onde me levas Mário?” mas ele, nada; respirava muito depressa, a modos que com raiva, e metia as mudanças sempre a arranhar como se não soubesse conduzir; quase bateu no portão da Quinta do Tanque. Acho que bateu. Ao depois tirou-me do carro à força com cara de poucos amigos como quem me queria bater. Percebi logo o que ia acontecer e fiquei sem pinta de sangue. Ainda tentei fugir mas estava sem acção nenhuma, com as pernas bambas. Foi tão rápido. A minha cara na chapa do carro, a chapa a queimar-me, o cheiro a gasolina, e ele: “Quieta!”.
Ele a resfolegar como um cavalo na minha nuca, e o meu corpo a aceitá-lo dentro de mim. Era como se eu fosse duas. Uma em pânico a querer gritar de horror e a outra em delírio a querer gritar de gozo. Mas eu ferrava os dentes no braço para não fazer barulho porque do outro lado do muro passava gente.
O corpo não nos pertence, se pertencesse eu teria esperneado, gritado, mas não, só a minha cara a avançar e a recuar na chapa quente do carro e a dor e o gozo ao mesmo tempo, que Deus me perdoe se peco, mas era como se ele me estivesse a esventrar, salvo seja, e isso fosse bom. O meu corpo fugiu-me, deixou de ser meu. Porque é que Deus me fez assim? Porque não tive forças para resistir? Quando ele acabou de se servir de mim eu já não me tinha de pé, e escorreguei até cair de joelhos à frente do carro, toda esmolambada. Em pouco tempo fiquei um nojo. Num minuto deu cabo do que eu levei uma hora a arranjar para ir para o trabalho já preparada para a festa.
Ele com as calças arreadas, nos artelhos, como se tivesse ido à sanita e não encontrasse o papel higiénico. Ao depois a urinar num arbusto, a sacudir-se e a arrumar aquilo atirando o traseiro para traz. Que asco! Que ódio! Eu só disse: “Leva-me para casa.” Ele passou a mão na porta de trás do carro à procura da esmurradela e rosnou “Que chatice!” Acendeu um cigarro e tirou-me dali já a saber conduzir, já a respirar devagar, já sorridente; embora sebento de suor, com as mãos a deixarem marcas em tudo o que tocava. Ao passo que eu me sentia desfeiteada, porca, com um corpo que ainda não me parecia meu.
O pior era no dia seguinte no emprego, como é que eu ia encarar aquele varrasco?
Logo no primeiro dia de trabalho eu vi que ia ter problemas com ele. Um olhar doentio, sempre a pôr defeitos em tudo o que eu fazia, só para eu ter que lhe pedir ajuda. Mas eu não nasci ontem, sei muito bem como me defender, e não era um cavalo como ele que me ia levar à certa, desdemente que eu não lhe desse lugar a ousios. Além disso o Adelino era filho do patrão, e ele não se esticava muito. Mas na Segunda-feira da Senhor do Ó ele esperou por mim lá dentro, e apareceu à porta como quem não quer a coisa, a dizer que ia à festa em Aguim e tal. Eu achei normal e aceitei a boleia, mas ia desconfiada; mal ele começou a ficar nervoso, eu achei que estava em perigo e fiquei para morrer – meu dito meu feito.
Maldita a hora.
O Adelino, que ficou de me ir buscar, mas que para mal dos meus pecados nunca tem horas para nada – sempre foi assim – deixou-me ali especada; e eu, cansada de estar à espera, caí na esparrela.
Como é que eu ia encarar aquele animal na Terça-feira? Ele sabia que eu tive prazer. Se calhar não foi uma violação porque eu tive prazer. Mas só Deus e eu é que sabemos que eu não queria ser abusada por aquela besta, mas ele sabe que eu gozei como uma égua no cio, e isso é que me atormenta. Violou-me sim, foi como se me tivesse injectado à força uma droga no corpo que me fez perder a cabeça. Ele violou-me a dobrar: violou o meu corpo com a força bruta e a minha vontade com o prazer, e eu fiquei num farrapo, desonrada na carne e no orgulho.
Como eu nunca mais lhe olhei para as fuças, ele um dia destes no trabalho todo daimoso: "Em acabando isso vem falar comigo que te enganaste nesta venda-a-dinheiro." E eu: "Se tens alguma reclamação, fala com o patrão." E aquele javardo ao depois passou por mim e resmordeu: "Tu és boa é a encher pipas ao alto." Aquele untuoso, aquele filho duma cadela, que Deus me perdoe, que a Ti Adelaide que Deus tem era uma santa.
Acho que não devia estar a escrever estas coisas no meu diário, alguém pode um dia ler isto, e de mais a mais, agora o que eu faço de melhor é pôr tudo para trás das costas, que remédio.
Eu queria esquecer tudo o que se passou mas parece-me que toda a gente sabe. Em primeiro achei que ninguém sabia mas ao depois fiquei desconfiada que ele se gabou aos amigos do copo, que parece que têm visco no olhar e estão sempre na caçoada quando passam por mim e que até parece que me comem com os olhos. Aqueles moinantes hão-de futurar lindas coisas a meu respeito. Um botou-me uns olhos manhosos e disse para eu ouvir: “Será q’anda esponque?” Que ele é um bêbado sempiterno, um boca de favas que não dá uma para caixa; que o que ele queria dizer era "suponha que", que é como se diz pranha em Aguim. Aquele labrego. Para salvação da minha alma eu andava prevenida, senão tinha-me desgraçado.
Ainda se se dissesse: Ah, ela tinha falta de sexo e queria era deboche, mas não, eu namorava com o Adelino e tinha tudo o que queria dele; fui é apanhada de surpresa no meu ponto fraco. Mas não é o ponto fraco de todas as mulheres? Mas sabe Deus e eu em como eu antes preferia morrer do que ter prazer, só nojo e dor; que ainda sinto raiva por ter deixado perceber que gozei com as brutidades daquele porco roncolho, mas as forças foram-se-me não sei para onde, e eu fiquei de joelhos a ganir sem fôlego à frente do carro.
Na Terça e na Quarta fiquei em casa, mas na Quinta voltei à festa e foi nesse dia que reparei no Zé. Aqueles olhos ternurentos postos em mim, e eu deixei-me sorrir para ele – que ainda estou para saber porquê.
O Adelino a atazanar-me a paciência e eu a dizer-lhe: "Deslarga-me, vai fazer companhia àquela delambida com quem estiveste na Segunda-feira, e eu à tua espera." Ele a desfazer-se em desculpas e eu cá para mim: "Está bem deixa, daqui não levas mais nada." Que eu até andei embeiçada com ele, e ó mais, nunca me faltou com nada, e até é filho do patrão e tudo, mas não é homem de uma mulher só.
E fui-me achegando para o Zé, um passinho de cada vez. E ele a ficar corado, sem saber onde por as mãos, mas a dar passinhos no meu endireito também. Quando estávamos ao lado um do outro, ele para mim: "Está uma noite primorosa." Ó meu Deus, onde vai ele buscar aquelas palavras?
Mas eu senti uma alegria dentro de mim como se me tivessem dado uma prenda, um ramo de flores; nem sei explicar bem. O tratos que ele não deve ter dado à cabeça para se sair com aquela palavra ali do pé para a mão, só para me impressionar, e eu disse-lhe: "Está uma noite linda para começar um romance."
E assim Deus me dê saúde em como aquela noite foi a primeira noite do nosso romance.
Olhei para ele e perguntei-lhe se queria dançar comigo. Ele ficou tão atarantado que me apeteceu rir. Pegava na minha mão com as pontas dos dedos como se tivesse medo de me magoar, então eu agarrei a mão dele com a minha mão toda, e ele todo envergonhado. Envergonhado só por pegar na minha mão.
Fui-me encostando a ele devagarinho para não o assustar, e ele tão feliz, tão feliz, que até parece que me pegou a felicidade.
Aquela foi mesmo a primeira noite do nosso romance. Que o que eu senti, tive logo a certeza que era amor.
Amor é quando a felicidade se pega.