Friday, January 23, 2009

A Doença da Memória

Para os lados do mar o céu desenha uns fiapos cinzentos por entre os tons ainda quentes do pôr-do-sol, e ele vira-se como se estivesse interessado em aproveitar os últimos alentos de vida da tarde, mas estou em crer que foi um acto reflexo, como se respondesse a um chamamento.
A tarde morre em silêncio, mas o silêncio tinha uma voz. O silêncio tinha a voz do mar. Mas ele ouvia o silêncio por baixo dessa voz. Uma voz fragorosa e depois fervilhante; uma voz materna, que primeiro ralha e depois arrulha. Mas por baixo do silêncio feito dos sons, de todos os sons que povoam a vida, e que não ouvimos porque estamos entretidos a viver, existe o vazio. Ele está a ouvir esse vazio por baixo da vida. O silêncio da própria alma, como um buraco negro numa toalha branca, como um nódoa de morte caído no tecido da vida.
Levanta-se e caminha um pouco, olhando sempre para o lado do mar. Há muito que aprendeu a enfrentar esse chamamento sem voz. Chamamento não, talvez uma atracção, uma tentação; como um poço fundo a fazer vertigens.
Sente as mãos vazias, como se tivesse deixado cair uma ferramenta que agora lhe faz falta. Inúteis, as mãos, balançam ao lado do corpo e os olhos sempre olhando o mar. Sempre, sempre olhando o mar.
Um avião passa rasante junto à rebentação, encaminhando-se para a base de S. Jacinto, e o farol da Barra de Aveiro atira-lhe com um disparo de luz; depois risca a tarde num movimento circular como quem desvia o olhar embaraçado por aquele disparo inútil.

Ele encontra-se agora no chão do passeio, as mãos procurando a arma perdida, rolando sobre si próprio. O buraco de silêncio enche-se de gritos, de explosões e daqueles estalidos que os projécteis fazem quando passam sobre as cabeças dos soldados, mostrando que ainda estamos vivos dado que já passaram quando os ouvimos.
Outro avião, talvez um Fiat a julgar pelo som sibilante da turbina. E ele rasteja sobre a picada procurando camuflar-se atrás do capim. Tragam-me dilagramas que eu rebento com os filhos da puta! Os cartuchos das Kalashes vêm ter acima de mim. Eles devem estar perto… 
O estridular de uma gaivota em busca de poiso para passar a noite torna infrutíferos quaisquer esforços para resistir a uma emboscada, e lentamente os sons vão-se desvanecendo até que finalmente se ouve de novo a voz do mar.
 O sol deixou um rasto acobreado por sobre as águas e tudo começa a tomar os seus lugares, como se tivesse tocado a recolher e a praia toda se preparasse obedientemente para a noite.
Mete o vigésimo cigarro do dia na boca, acende-o e tira uma passa como quem toma um remédio. Olha mais uma vez o mar. Sabe que agora pode olhar o mar sem receio e sente um alívio enorme ao avaliar a imensidão daquela massa de água que o separa do passado. Não será por muito tempo; um dia ou dois, e de novo aquele vazio lhe fará lembrar que algo de si ficou para trás, como o último olhar de terror do inimigo abatido, como o apelo impotente do camarada de armas que não foi possível resgatar das mãos do inimigo. Então retomará a sua missão inacabada, uma e outra vez até que um dia ele próprio seja abatido neste combate sem quartel; por uma bala perdida, por uma mina traiçoeira, ou simplesmente pela vida.
Levaram quase um ano a fazerem dele um combatente, ensinaram-lhe tudo o que um pacato pedreiro precisava de aprender para se tornar alguém capaz de lutar até ao limite. De matar. E depois, no fim, no prazo de uma semana, esperaram que ele deixasse de ser um combatente, e simplesmente esquecesse, como se tudo não tivesse passado de uma brincadeira inofensiva, e voltasse a ser o pacato pedreiro que fora em tempos, como se a memória de um homem fosse um balão; mais fácil de esvaziar do que de encher.
Talvez a mulher tenha razão, talvez o melhor seja aceitar humildemente que está doente. Mas que sabe uma mulher sobre os perigos de uma emboscada, que sabem estes gajos todos aqui do que é ter que vencer o medo e seguir em frente, sempre, sempre em frente?
O farol da Barra, agora, já noite, parece querer desenhar uma circunferência de luz em redor de si mesmo, mas o foco perde-se na noite infinita. A verdade é que tudo sem excepção se perderá na noite infinita; é uma questão de tempo. Caminhamos todos em direcção à escuridão, à escuridão sideral ou à simples escuridão do corpo, a qual é cada vez mais difícil de iluminar de prazer. Como um mar nocturno. À excepção talvez, de algumas praias de ternura, alheias, inocentes, às escarpas cruéis da nossa memória. Como seria bom, ao menos, o riso senil do esquecimento tão próximo da inocência que nos permitisse aceitar a decadência sem luta. Uma tarde soalheira debaixo da sombra maternal de um castanheiro sem idade e ao longe a família feliz no caleidoscópio do sol. Talvez então, sem remorso nem raiva aceitássemos a doce prepotência divina, como uma mentira piedosa.
Talvez valha a pena, então, ser humilde e aceitar que a memória também pode adoecer, que às vezes um homem não pode levar tudo consigo, tal como nem sempre é possível resgatar um camarada de armas das mãos do inimigo.
Olhou o mar, mais uma vez olhou o mar, mas agora com um sereno cansaço, como se tivesse terminado uma longa viagem.
E a voz da mulher doce e terna devolve-lhe o mundo: - Ó Zé; estamos à tua espera para jantar.

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