Não, meu amor, não vou contar-te agora porque não posso ouvir essa música; agora acabaste de chegar da praia onde a tua silhueta vista daqui parecia uma criança sonhando com uma grande viagem. Põe uma canção que não faça sentido nenhum, uma canção que ganhe sentido apenas por ter sido ouvida quando eu ainda tinha na memória a tua imagem de criança sonhando.
Não, meu amor, não me obrigues a falar disso agora, não é nenhum segredo, é que ainda somos ambos jovens e se eu começar a falar disso vou envelhecer dezenas de anos e não vais querer um velho a teu lado enquanto os teus sonhos ainda são tão inocentes.
Vês esta luz amarela que vem do mar? Uma luz impossível mas que transforma esta hora do dia numa ampola de âmbar que segura o tempo para nos dar oportunidade de sermos felizes. É preciso alimentar a ilusão de que o tempo espera por nós ou nunca sentiremos prazer. Mais tarde, quando os nossos corpos estiverem cansados e os teus olhos ainda estiverem estremunhados de amor, já todas as músicas serão possíveis.
Há pouco a luz era ainda limpa e tu corrias sobre o areal, e depois paravas, e eu seguia-te por entre os desenhos da varanda, e o tempo parecia abrandar. É que eu meço o tempo com as batidas do coração, e ver-te daqui sobre a praia punha-me no coração uma paz assim tão grande, porque toda a praia era luz e tu eras apenas luz sobre a praia. Uma brincadeira do sol só para que tu parecesses uma criança sonhando com uma grande viagem.
Depois a tarde ficou azul – céu e mar. E tu, mais nada. Tirei uma foto, quase nada ficou na foto, só azul. A seda da luz poente e a longa toalha das águas. De vez em quando alguém de muito longe deveria puxar a toalha porque uma franja de espuma enrolava e desenrolava junto aos teus pés, e eu tinha um pensamento apenas: um dia vou lembrar-me que fui feliz aqui.
Ver-te daqui enquanto a luz da tarde amarelecia, era como pintar um quadro com o olhar. Não sei se era a praia que estava deserta se era eu que só te via a ti. Devia correr um ventinho do lado do promontório de onde D. Fuas ia caindo ao mar, porque o teu cabelo parecia desalinhado por uma carícia, depois viraste-te para aqui e vieste embora como se viesses atraída pelo meu olhar.
Saíste da praia como quem acorda devagar, e nasceu em mim uma urgência inexplicável de ficar a sós contigo, de ficar na intimidade absoluta dos nossos corpos, de comungar o síncrono prazer dos nossos gestos, de solver num só, as distintas essências dos nossos dois seres.
Agora que ainda sentes o mar arfando no teu peito, não ponhas essa música, que despertará ecos que ainda ressoam em mim, ao fundo, muito ao fundo, como uma nuvem negra que a aragem do mar vai afastando lentamente.
Talvez um dia eu me sente assim a teu lado e te conte a ti o que impus a mim mesmo esquecer. Quando eu era um outro e vivia uma outra vida num outro mundo. Então alguém inocentemente pôs uma música a tocar, uma música que nessa altura ainda nada significava para mim, mas que se impregnou dos silêncios e dos gritos, das longas solidões e das mitigadas alegrias. Uma música que se impregnou do sofrimento do próprio Tempo que penava dolorosamente e envelhecia sem avançar. Essa música devolve-me as vozes de amizades de sangue e de ódios viscerais. Essa música é o estertor do Tempo à beira do colapso. Agora deixa que isso permaneça esquecido como uma carta perdida no fundo de uma gaveta de um móvel antigo no sótão da casa de um avô há muito falecido.
Talvez um dia eu me sente assim a teu lado e te conte tudo, palavra por palavra, como se tivesse acontecido a outro, como se fosse um livro que li enquanto criança, um breve pesadelo que assombrou a minha infância. Mas tenho que estar preparado, porque pode acontecer-me que alguma antiga lágrima não chorada venha a intrometer-se na conversa. E então, poderás pôr essa música enquanto bebermos pelo mesmo copo e fumarmos o mesmo cigarro; mas nessa altura teremos uma longa história de amor e já nada nos poderá roubar todo o prazer que tivemos.
Mas neste momento, enquanto a nossa história de amor é ainda muito jovem, deixa-me olhar-te em silêncio ou então, ao som de uma música ainda sem significado nenhum, como a banda sonora de um filme que acompanha as imagens sem darmos por ela; de modo a que fique gravada apenas no nosso subconsciente para que um dia ao ouvi-la de novo nos sintamos repentina e incompreensivelmente felizes.
Agora, meu amor, que nada mais exista para além de ti; que eu só veja a luz do céu que dura nos teus olhos, que eu só ouça o arfar do mar que persiste no teu peito, e ao fundo, muito ao fundo, que eu ouça apenas o rumor das ondas sobre a praia, como o fragor de uma batalha distante, disputada entre povos desconhecidos; uma guerra fútil qualquer onde nunca combati, com mortos e feridos que nunca conheci, e cujo sofrimento não perturbe o meu egoísmo de querer ser feliz.
Agora deixa que tudo pareça uma intempérie distante, imaterial e inofensiva, enquanto saboreio o tangível e doce aconchego do teu corpo, enquanto partilhamos essa onírica vertigem que só as almas inocentes sentem antes das grandes viagens.
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