Sunday, June 3, 2007

Encontro de Veteranos

Para onde vão os sonhos quando morrem?
Para onde vão todos os projectos abandonados, todas os desejos e ilusões que um dia eram certezas e de que agora nem nos lembramos já? Quem souber que diga.
Há dias em que o passado nos visita como um intruso que surge do nada, quando uma alegria súbita e incompreensível nos ilumina todo o ser ou uma tristeza inesperada nos deixa de repente na mais dolorosa sombra.
Porém, há dias que somos nós que vamos ao encontro do passado como quem decide entrar no sótão da casa velha dos nossos avós, pela razão tão simples de o sótão ter permanecido fechado tanto tempo que sentimos curiosidade em saber o que lá se guarda ainda.
Uma ave qualquer, de que não sei o nome e que nada tem a ver com isto, crocita um lamento tristíssimo para os lados do Espírito Santo e o arfar de um helicóptero que deve dirigir-se para os HUC traz-me de volta, no mesmo instante, ressonâncias de África.
Ao cimo da encosta, as árvores inquietas com o vento. No andar de baixo os vizinhos a rirem de vez em quando. E o pássaro crocita, crocita. Pode haver mais tristeza no canto de uma ave sem nome do que no coração de uma viúva.
O carro do lixo desce a calçada da antiga estrada do Tovim num estardalhaço despropositado que me impede de pensar seja no que for durante cerca de dois minutos. Só consigo relembrar os rostos, os sorrisos e algumas frases entrecortadas que ressuscitaram, à mesa do jantar, uma parte de mim que já havia morrido há muito.
Afinal aquela mão no meu braço enquanto o helicóptero não vinha, era o enfermeiro Costa. Eu a julgar que tinham demorado horas a evacuar-me e não foram muito mais de vinte minutos.
Eu tinha frio. Eu tinha tanto frio e afinal o sol fritava os miolos dentro da cabeça de todos os soldados.
E não havia nenhuma música dos Doors enquanto o helicóptero descia na picada e no entanto, durante todos estes anos eu recordo a voz do Jim Morrisson a dizer-me:
"Isto é o fim, meu belo amigo. Isto é o fim, meu único amigo, o fim. Custa deixar-te ir, mas não voltarás a acompanhar-me. É o fim do riso e das mentiras piedosas. É o fim das noites em busca da morte. Isto é o fim." E uma guitarra de cordas tangidas como nervos doridos ficou a soar para sempre dentro do meu peito.
A latoada do carro do lixo ao longe, a tosse convulsa do helicóptero dirigindo-se ao hospital e o canto do pássaro lúgubre são agora também a única música possível, porém, talvez um dia eu os recorde como doces acordes de violino a suavizar as dissonâncias agrestes das minhas memórias na noite do dia em que reencontrei os meus companheiros de Mueda.
- Desculpe furriel… eu fiquei e você avançou sozinho.
Há trinta anos que ninguém me chamava furriel, esse posto inventado por Salazar para não ter que nos pagar o ordenado de Sargento e que este governo despromoveu a Cabo da Armada pela mesma razão. Madrasta pátria esta cujos governantes nunca conseguem estar à altura dos seus soldados!
- Peço-lhe desculpa furriel, eu é que fui culpado por você ter sido ferido.
Quantos anos de falsas memórias? Quantos anos o cérebro organizou as nossas histórias de guerra para suprir a culpa, para nos fazer aceitar a culpa, ou para nos castigar por uma falsa culpa?

Encontro da CART 3503 em Pardes no dia 28-04-2007

E o que é que faz com que mais de cinquenta homens se reúnam todos os anos com o aparente álibi de jantarem em conjunto e de corrigirem as memórias uns dos outros? Só sei que não vale a pena tentar explicar, porque para perceber isso é preciso saber o que é caminhar ao lado de alguém cuja vida depende de nós; alguém de quem depende a nossa própria vida; alguém a quem desejamos ardentemente que não leve um tiro ou pise uma mina, porque ficaremos irremediavelmente sós perante a morte. Ficamos tão sós quando alguém é abatido que nos sentimos culpados, porque era nossa obrigação defendê-lo; porque ele foi abatido a defender-nos a nós.
Ficamos tão sós que carregaremos essa culpa durante trinta anos… "Peço-lhe desculpa furriel…" E no entanto a única culpa foi o ter ficado vivo e incólume como era sua obrigação, para poder defender-me quando eu tombei.
Que fria que está a noite. Será que é porque o Inverno não quer ir embora este ano ou será que não sinto o calor que faz, porque me gela ainda a dor de estar ferido? Uma dor que vem às vezes. Não sei de donde vem. Talvez do lugar para onde foram os nossos sonhos quando morreram. Talvez do sítio de onde vieram as nossas falsas memórias.
Encontro da CART 3503 em Paredes em 28 de AbrilÁs vezes à noite, quando um pássaro sem nome crocita saudades para os lados do Espírito Santo e um helicóptero que vai para os HUC nos traz ecos de África, às vezes quando vamos visitar o sótão da nossa memória onde guardamos as coisas do passado a que já não dávamos valor; às vezes quando vamos ao encontro daqueles que connosco pisaram as picadas minadas de África; às vezes quando é Abril e faz anos que a guerra acabou; às vezes quando nos dizem: "Não te via há tanto tempo. Que fazes? Imaginava-te pintor"; às vezes…
Às vezes, por breves instantes, os sonhos esquecidos regressam, ao mesmo tempo que sentimos o abraço apertado de um velho amigo ou a falsa memória de culpa de um irmão de armas.

2 comments:

Fátima Santos said...

já (!)publicaste em papel?! se não, mexe-te
um abraço

António Duarte said...

Continuas com a escrita em muito boa forma. Parabéns e até um destes dias.
~1 abraço