Sunday, November 1, 2009

A Visita


Sei que estás a pensar "Ó Zé, cala-te", mas temos tempo de ficar calados; é preciso dizermos alguma coisa para termos a certeza que ainda andamos por aqui. Sabes lá a falta que me faz ouvir-te cantar. Tu cantavas muito bem Etelvina; eu às vezes queria acompanhar-te, mas começava a desafinar e tu rias-te de mim, e eu ficava sem jeito. Depois deixaste de cantar. Se vinhas a cantar na rua, calavas-te mal entravas em casa… Não faças essa cara, pronto, não falo mais nisso.
Parecem boas as maçãs que me trouxeste. Preferia flores. Sim, eu sei, nunca dei valor às tuas flores, mas aqui não há flores, aqui falta um bocado de cor às coisas. E a cor faz-me falta.
Olho para trás e parece-me que a minha vida foi quase toda a preto-e-branco. No baile da Mamarrosa tu olhavas para o chão quando eu olhava para ti, e eu não tinha coragem para te convidar. Eu tinha as mãos cozidas com o cimento das obras, encortiçadas pelo trabalho, e ele tinha mãos de quem não fazia nada; quando tiravas os olhos do chão, Etelvina, era para ele que olhavas, e quando olhavas para ele o teu rosto mudava como uma janela onde bate o sol. Às vezes também olhavas para mim, mas quando olhavas para mim, nada no teu rosto mudava. Eu não tinha luz suficiente para te iluminar Etelvina. Parece-me que vivi sempre à sombra até te ver sorrir.
Porque será que um dia sorriste para mim, Etelvina? Porque foi que um dia os teus olhos pousaram em mim um foco de luz? Nesse dia descobri que o mundo era a cores.
Agora a cor faz-me falta. O médico perguntou-me "O que é que o amigo Sousa sente?" e eu: Sinto falta de cor. E ele ficou a olhar para mim como se eu tivesse um tomate esborrachado na testa.
Ao princípio parecia um rato a roer-me a alma, depois o rato transformou-se num cão danado sempre a roer-me a alma. E eu a ficar vazio por dentro, à medida que ele me comia a alma. Agora já não sinto a falta da alma; os remédios encheram o espaço vazio como se eu fosse um boneco de trapos; mas falta-me a cor. Traz-me flores Etelvina. Quando voltares a visitar-me traz-me flores. Mas as maçãs parecem boas.
Em África lembrava-me bem das tuas canções e ouvia-te cantar na minha cabeça. Foi isso que me valeu na guerra, as canções que tu cantavas dentro da minha cabeça. Agora já não me lembro. Será que um dia eras capaz de cantar para mim?
Que estás a ver? Aí da janela só se vêem os telhados da enfermaria das mulheres, não há nada pra ver. Às vezes fico aí horas a fio como tu estás agora, e de vez em quando passa uma ave. Quando isso acontece só não fico feliz porque já não me lembro como é. Mas alguma coisa muda cá dentro quando passa uma ave.
Sinto tanta solidão Etelvina. A maior solidão não é quando sentimos falta dos nossos entes queridos, dos nossos amigos, dos outros; mas quando sentimos falta de nós; quando deixamos de saber de nós. Se ao menos tivesse a memória de uma bela história de amor para me fazer companhia, mas a nossa história parece ter sido feita de coisas que não aconteceram Etelvina. Devia ter emigrado contigo como tu querias, em vez de ir para a guerra, devíamos ter ido à procura de uma história para nós; devíamos ter feito, ao menos, uma grande viagem.
Ah, que é isso? Não fiques assim. Aqui é proibido andar triste. Vem logo alguém perguntar se tomámos os remédios, e se não nos pomos com boa cara reforçam-nos a dose não tarda nada.
Mas o pior é a falta de cor. As pessoas não têm cor, as paredes não têm cor, a comida não tem cor.
Mas de resto estou bem. Sabes, até estou bem demais. Não me dói nada. Nada me incomoda. Faz-me falta ter alguma coisa, mesmo que fosse má. Uma dor, ou assim. Quando me sentia só, em África, eu ferrava as unhas na pele para ter a certeza que ainda estava vivo, agora parece que é proibido sofrer, e dão-me remédios para eu não sentir nada. É por isso que passo aí horas esquecidas à espera que passe uma ave. É que me tiraram tudo, Etelvina. Agora tiraram-me até a dor. Faz-me falta ao menos um pequeno desconforto. Será que seria muito pedir um pouco de chuva a cair-me no rosto?
Mas o médico acha que vai ser difícil os gajos lá em cima acreditarem que isto começou em África. O pior é para ti, sempre era uma ajuda, que o teu patrão, à medida que envelheceste, deixou de te aumentar. Ah, não olhes para mim assim, que eu sempre soube e não te levo a mal. Sabes lá o que um homem guarda cá dentro quando tem um espaço vazio no lugar da alma. Quando um homem aprende a aceitar a morte como uma coisa sem importância.
Mortes sem importância. Como espantalhos caídos no capim. Era como se nunca tivessem vivido. E eles não acreditam que isto começou em África.
É um crime tirarem um homem do lugar onde vive e atirarem-no para o fundo do porão de um navio e mandarem-no para a matança como um porco. E o lugar onde eu vivia eras tu Etelvina. Lembro-me do teu corpo como um lugar aonde podia regressar no fim do dia. Olhava nos teus olhos, Etelvina, e sentia que tinha chegado ao meu destino.
O furriel dizia que se eu soubesse escrever era um poeta. Nunca percebi se era a gozar comigo. Mas percebo que quando deixei esta terra para ir para a guerra deixei o teu corpo desabitado e um homem não pode nunca deixar o seu lugar desabitado, nunca deve abandonar a sua casa, e tu eras a casa onde eu queria viver Etelvina.
Às vezes chegava um aerograma teu e eu ficava feliz. Nessa altura ainda me lembrava como era ser feliz. Era como ver todas as aves do céu; era como sentir a alma de todas as cores. E o furriel dizia-me "Ó Sousa, hoje estás de alma lavada". Mas à medida que o tempo foi passando a alma foi-me ficando encardida.
Eu sei que isto começou em África, porque uma ocasião olhei para um aerograma teu e reparei que as tuas palavras não tinham cor nenhuma, pareciam escritas com cinza. Nesse dia não consegui ouvir-te cantar dentro da minha cabeça. Foi a partir daí que alguma coisa cá dentro me começou a comer a alma.
Quando eu fui embora, o meu pai com vergonha de estar a chorar. A minha mãe a dizer "Meu filho. Meu filho. Meu filho", e tu a olhares para o chão como no baile da Mamarrosa.
Eu podia ter fugido pra França como o meu primo, mas eu pensei: seja o que deus quiser, eu sou um paz d'alma que não faço mal a uma mosca, mas vou cumprir a minha obrigação. Maldita a hora, aquilo era porrada de criar bicho e eu queria voltar a ver-te Etelvina, por isso fiz tudo para sobreviver.
Mas sobreviver a uma guerra não é grande coisa, Etelvina. Quando os mortos não têm importância de que vale sobreviver? Além disso, Etelvina, eu não sobrevivi completamente, alguma coisa minha lá morreu.
Quando voltei, o meu pai envergonhado das lágrimas novamente. A minha mãe novamente a dizer "Meu filho" vezes sem conta, e tu novamente sem conseguires olhar nos meus olhos, como no baile da Mamarrosa. E eu olhava para vocês e pensava que ainda não tinha acabado de chegar, que uma parte de mim tinha ficado para trás, muito, muito para trás.
Ainda se ao menos nos ensinassem a ser civis de novo, como nos ensinaram a ser soldados, mas não. Durante meses e meses eu continuei a ser apenas um soldado no meio dos patos e das galinhas. Um soldado que tinha perdido a arma algures. Acreditas que sentia falta da arma? Quando se anda na guerra, Etelvina é preciso mais tempo para conseguir trazer a alma toda de volta.
E depois, quando voltei, nunca mais te ouvi cantar para mim, Etelvina. Se vinhas a cantar na rua, calavas-te mal entravas em casa. Eu sei, eu sei; não é fácil viver com um homem que vai ficando oco por dentro.
Esse telhado é como um espelho, Etelvina, olho-o e vejo o vazio que vai dentro de mim. Mas quando tenho sorte, passa uma ave e fico um nadinha mais perto da felicidade.
Deve estar a passar o efeito dos remédios. Daqui a nada vem o enfermeiro e o vazio logo desaparece, e depois vou ficar atafulhado com um monte de farrapos cá dentro.
Onde estás? Já foste embora? Ah Etelvina… Ia jurar que tinhas vindo visitar-me e que me tinhas trazido maçãs. Se ao menos me escrevesses um aerograma. Pareciam boas, as maçãs.
Mas traz-me antes flores Etelvina.
Trazes?

2 comments:

Jorge Narciso said...

Ola Manuel

A enorme sensibilidade estética e a profundidade de pensamento que emana desta tua "vista", tocaram-me muito, nomeadmente pela secante que ela traça na dramática vivencia colectiva, imposta à nossa geração.
impulsionado a transmiti-lo através deste comentário, fiquei enredado nas palavras, que por muito que rebusque me surgem pobres e inexpressivas, comparadas com a profunda simplicidade da prosa que pretendem comentar.
Para sair desta à boa portuguesa, resumo assim:
gostei muito, mesmo muito!

Como habito em Sintra, vou estar atento ao espectáculo que se anuncia para Janeiro com base nos teus textos e também de imediato
vou encomendar os teus (já percebi que nossos) "Cacimbados" de que só agora soube a existencia.


Continua a juntar palavras

Abraço

Jorge Narciso

Jorge Narciso said...

PS

Quando digo "vista" - naturalmente que queria dizer "Visita"