Tuesday, September 29, 2009

A Persistência da Dor

No chão da gare da Curia a minha sombra imita um flamingo enquanto eu me equilibro pondo a perna amputada sobre a canadiana, de modo a usar ambas as mãos para acender o cigarro.
As pessoas passam por mim e abrandam a voz como se faz quando somos surpreendidos a meio de uma conversa por uma visão inesperada.
Algumas a olharem para trás, depois de passarem.
Uma folha d' O Século que o vento não consegue descolar do chão. Levanta-lhe uma ponta, fá-la ondular mas ela não sai dali. E, vinda não sei de onde, uma canção dos Procol Harum: Saltitávamos o alegre fandango, Fazíamos cabriolas pelo chão; Eu sentia-me um pouco enjoado Mas as pessoas pediam mais…
O vento a brincar com o jornal. Uma velhinha a descer da carruagem. As pessoas impacientes à espera que ela desimpeça o caminho. E a canção com sonoridades barrocas e letra psicadélica: Quando a moleira contou a sua história O rosto dela, a princípio só assombrado, Ficou branco como a cal da parede…
A velhinha a aproximar-se de mim olhando para a minha mochila no chão como quem vem em meu auxílio, e eu, num movimento que lhe deve ter parecido acrobático, rodo sobre o único pé, pego com ambas as mãos na mochila, as canadianas presas aos braços pelos apoios, volto a rodar em sentido contrário, e depois de encaixar a mochila às costas passo por ela sem pudor, ignorando a crueldade da minha exibição. Olho para trás e vejo-a tristíssima a ver-me a afastar, andando duas vezes mais rápido do que ela. Daria decerto uma perna para ter a minha idade e o meu vigor. Abrandei a marcha envergonhado, como se por andar mais lentamente agora, eu pudesse diminuir o meu sentimento de culpa.
Cá fora já não resta nenhum táxi, e eu volto a entrar no átrio da estação para procurar um banco. E a velhinha passa por mim. Os nossos olhares cruzam-se por instantes, e ela sorri-me com a doce complacência dos que já viram de tudo na vida, o que aumenta o meu remorso.
Só encontro onde sentar-me na gare.
Há luz demais, tenho que semicerrar os olhos para ver para além da sombra. A folha de jornal, ao longe, inundada de luz, como uma foto tirada em sobreexposição.
A folha a fazer negaças ao vento.
A música a arremedar uma suite de Bach, os versos delirantes: Por entre as cartas de jogar Indaguei se não seria Uma das dezasseis virgens vestais Que se dirigiam para a costa E embora tivesse os olhos abertos Bem os podia ter fechados.
A música repetitiva, que afinal sai pelas frinchas de uma porta a dizer "Chefe da Estação", começa a fazer-me sono, e uma sensação de desamparo toma conta de mim.
Parece que iniciei aqui uma viagem à volta do mundo, que fui apanhando coisas pelo caminho até constituir um enorme património, que depois, por cansaço e preguiça, por descuido e negligência, fui perdendo a pouco e pouco, e que agora, aqui de novo, terminada a viagem, disso nada resta, para além de algumas esparsas memórias. Memórias de alegrias amargas e perigos letais reduzidas a algumas imagens dispersas. Memórias de amigos e inimigos de que acabarei por me esquecer completamente.
Tenho que me por de pé para não adormecer.
De Santa Apolónia até aqui também fiz de tudo para não cair no sono, dado que sou perito em não acertar com a estação onde quero sair. Já fui parar sem querer a Campanhã, e depois, tomado o comboio em sentido contrário, fui ter à Mealhada, quando o meu destino era o quartel de Paramos, mais ou menos a meio caminho.
Assim, fiz de tudo para me manter acordado, mas os meus olhos acabavam sempre por descaírem mortiços para o meu sapato, solitário entre as duas canadianas, que parecia ter qualquer poder hipnótico. E lá fora a paisagem numa vertigem.
– Se olhares para as botas com atenção o comboio pára.
– A sério avô?
Desde a minha infância a ilusão egocêntrica da biqueira do meu sapato a parar o comboio e a fazer a paisagem correr para trás. Se existissem comboios no tempo de Galileu talvez ele não tivesse sido humilhado pelos sinistros juízes da Inquisição, e talvez lhes tivesse sugerido que dessem mais atenção às biqueiras das botas do que à inspiração divina, pois que mais vale encontrar as soluções para os problemas transcendentes nas coisas insignificantes, do que justificar até as coisas mais insignificantes com a transcendência.
Depois, finalmente, a paisagem da torre da capela de Aguim com o Buçaco ao fundo como um rosto familiar, a dizerem-me que cheguei finalmente a casa.
Que longas que são as viagens que têm uma guerra pelo meio.
A torre da capela de Aguim apareceu ao longe na paisagem como um embuçado em pleno dia, e ao fundo o dorso da Serra do Buçaco tão esbatido que mal se distinguia do céu. Se fosse eu a pintar aquele quadro, punha um pouco mais de terra-de-sena para que um tom quase imperceptível de púrpura criasse a ilusão da distância; assim parecia que estava tudo no mesmo plano, e a torre branca da capela da N.ª Sr.ª do Ó parecia pintada sobre um papel de cenário.
Agora estamos finalmente sós na gare da estação da Curia: eu à espera que venha um táxi, e a folha de jornal que o vento não consegue tirar dali.
Então, repentinamente, um comboio passa sem parar. Os rostos a repetirem-se janela após janela como numa fita de um filme. Um ribombar contínuo de mil marretas em mil bigornas, que estilhaça o silêncio e bloqueia a atenção, fazendo ignorar tudo o resto. Um pânico repentino alvoroçando a folha do jornal atirada brutalmente contra o tecto da gare.

Por fim, fica apenas a aragem revolta e o silêncio. Mas dentro de mim permanece o eco, ou a memória do som como um desassossego da alma, tal como a dor permanece para além da bofetada.
Sim, toda a dor sobrevive muito tempo ao golpe. Mesmo quando se fecham as feridas; mesmo quando o riso regressa aos rostos; mesmo quando um sorriso sábio e complacente nos redime do nosso cruel egocentrismo; mesmo quando regressamos finalmente a casa e deixamos uma guerra longínqua para trás.
E a folha de jornal inquieta ainda, já o comboio vai longe…

1 comment:

Anonymous said...

Sim, a memória está sempre a atraiçoar-nos, porque não nos deixa esquecer aquilo que, pelo menos, entendemos dever ser esquecido...
Só tu para traduzir com "poesia" tanto sofrimento que a nossa geração viveu, mesmo, sem o sentir, por vezes.
Um abraço do
António P. Almeida